A bússola perdida de magnólias
O corpo enraíza-se na casa. Abarrotam-se as correspondências intactas debaixo das almofadas. Multicoloridas asas de insetos do verão que se despede não flutuam porque se aderem aos vidros que não limpo para ter este caleidoscópio de voos tatuados. Quando a pouca luz do dia sonolento que ainda deixo entrar bate suas falanges de poeira sobre as carcaças vítreas, estes espelhos voam pela parede manchada de digitais, o ambiente todo manchado com sementes de maçã, resquícios de incenso de flor de laranjeira, roupas amontoadas, uma cadeira jogada de pernas para o ar saturado de cafeína.
Tenho sono e não deito na cama deixada em estilhaços de areias que me cortam a pele das mãos. Rasguei todos os lençóis para forjar uma cama de palheiro. Acendo a pira funerária de ramos de cedros para, com lampejos de prometeu, incendiar o quadro amarelo. Estes retalhos aquáticos pingando pela audição me levam para a água que posso tocar sem o afogamento ensaiado, completo em ato purificador, e lavo-me diversas vezes ao dia e à noite, para afogar as promessas incoerentes com a intensidade das alucinações do rio. Conto os gatos de hora em hora, porque me apavora a noção da perda de qualquer pupila de abismos que me deixam fitar o campo de campânulas selvagens. Desligo o gerador para que se filtrem de mim todas as canções elétricas, todos os passos de trens, e grito na varanda para deixarem a rua descansar sob a constelação que o edifício não escondeu, as estrelas dentro do negror da existência.
Me deixem a sós com o écran dos astros e com a voz dos cavaleiros poderosos que deambulam o céu abandonado. Me deixem a sós! Me deixe a lembrança, me afogue de palavras náuticas, mas não me silencie do mar que dói como uma oração ao contrário. Me deixe beber a fonte de placenta da terra que não posso tocar, suspensa entre paredes de vestígios construídos com adjetivos magnetizados. Me deixe falar desalinhamentos e só me corrija se for para nomear de bruma pacífica a ilha submersa, ausente de silêncios humanos e de jogatinas humanas, ausente de qualquer coisa que estanque o entardecer. Me deixe madrugar até a noite de neblinas em arrozais, desapareça da minha procura, arraste correntes de piratarias aéreas e me cale quando vem esta água de dentro, que chamava fogo, mas tem perfume de corais perigosos. Não me deixe ausentar-se do mundo, então não me chame, grito ao telefone fora do gancho.
Então me sonho e me despeço de mim, conto os gatos, empurro as cartas para dentro das fronhas na sala sem travesseiros, para dormir sobre letras de florestas. E digo água-ardente, sondo o magma e cuspo terra, me dilacero no horto do assoalho riscado, leio a mão de flores que me desce arisca sobre a cabeça em flechas e me sinto em paz de magnólias mastigadas.
Deixa-me assim a planta de um sonho expulso de mim e procuro rumos que entupam a caixa de correios com selos que nasceram para deteriorar a sina dos destinatários que o vento suicida, porque estou aqui no centro da busca, encantado com autodirigíveis de corcéis — expressionistas vindos de dentro — para me arrastar intacto de moinhos e ramos quando estou aqui, na raiz do som.
A copista de fósseis imaginários
Pois minha individualidade, cerne oleoso de amêndoa amarga, arsênico hologramático na semente da maçã, foi violada. Por ele, o amado dos cânticos, que a retorna a mim, com molde de camafeu antigo convertido em almofada para alfinetes. As pontas são crânios perfeitos, cobertos de bolor perfumado, o veludo dos hábitos elementais.
A curandeira do império solar
Em meu tratado particular de esquizoanálise, a alma chocalho canta teus mortos e artefatos. E, xamã de ti, canibal de ti, índio de ti, espalhando barbáries mínimas em teu dorso iluminado, entorpecida de síndrome luciferina, aguardo a noite e a visto como um hábito de monge. Por pura exaustão pirofágica. O lodo no escalpo dos pés, queimando nas estrelas, com a baba de teus anjos: os viscosos generais, empalados em cerveja e tintura vermelha. Até que tu, mal-amado, desperte-me de um sono de eras selvagens e puras, e tique tateie minha sombra mais uma vez, esquartejando-me com as engrenagens desligadas de meus ancestrais. Meu proceder escambo me pesa os nervos. A pele escalpelo cicatriza fácil demais. Olíbano libidinoso, tu és. É preciso, sol do império, ferver teus exóticos inimigos, em óleo quente.
A filha pródiga
Conhecia a pequena garota que a sondava pelos armários de vidro, pelas ceras, pelas pratarias dos defuntos. Chamava-a lunar, película expressionista com a fissura do satélite, chiando como um sonar para cães e morcegos — para ver tremer a pelagem negra no cio da casa noturna — mimetizando a loucura de Diana pelos quadros. Chamava-a lunar, o cabelo de fogueira apagada, a cinza a lhe entupir crânio, e a sonâmbula mitose da idade de treva escorrendo pela boca. Joana de uma voz com ultraje misericordioso. As roupas escuras no fascínio das pontes. Desentendida, estilhaçada e estrela fria. Mas era no ventre solar: os coleópteros egípcios, a cabeça acesa dos quartos. Velas, polaroides, papel eletrônico. A ponta do vício, labareda entre os dedos, atravessando o parto matutino dos lençóis. Escandalosamente coroada pelos écrans. Descobriu-a sol: olho dourado de gato. Pela fronte, um jato de fios incandescentes. A brasa brotando no centro da fala. Partiu-a como uma tabela periódica. E, míope de quantum, deixou-a sumir como um esconjuro. A mulher que a visitava com passos de lua instalou-se no antro das superfícies refletoras. Tão inteira como uma ossatura de cobre iluminada conservada em geleira. E assim, dolorosa ensolarada, retornou.
A flor de zíaco
Não é para um rosto que me impulsiona a fulguração dos pés. É para um lago subterrâneo com a cor ofuscada de um rubi. Uma confusão de horizontes e longitudes. Um jardim de mirras, uma paleta psíquica. Onde estes ossos movimentam o ar: tambores, revoluções do barro, passos de ninguém para lugares todos. Onde as cidades brilham, mar de estrelas. De onde crescia tua voz coletiva, teus passos de mitologia. Onde a perdeu, definhando na prataria de um reflexo. Digo-te que não definharei. Sei dos caminhos cegos. Fecho os olhos para ver. Tua imagem desaparece. Inexisto. O lago me absorve na maresia de umas flores incontidas. Coração cheio de estradas. Espero que caminhe, um dia, o além que só diz.
A flor-rocha
Gostaria de falar sobre o mundo que demoramos tantos anos para construir. Este mundo plasmado de retalhos poéticos e que tornamos tão real quanto uma pequena safira na orla do barro profundo. Apenas falar sobre ele, como falávamos de seus mapas ainda irreais, com tesouros ocultos e caminhos assombrados por labaredas. Poderia ser verbalizado com a ausência da paixão ou com o peso de uma dor sentida por antecipação. Poderiam ser poucas palavras, mas que fossem frases completas, como as respostas inocentes das crianças, capazes de revelar a mais assombrosa indagação do universo apenas com uma graça metafórica. Assim como dizer: encheu-me de nuvens quando sorriu no calor do vento. Até mesmo: doeu-me a maciez do teu sono. Seria o mesmo que dizer: chorei por dentro quando o sino te cantou dentro dos vitrais e que parei sangrando no centro da praça para te ver dourando a sombra do voo dos pássaros famintos. Precisava dizer de onde nasceu o silêncio de prece sonora na fibra da alma insone. Tentaria palavrear a flor magnetizada por tantos nomes, sem que se conheça seu destino único, como é o nome de um deus transfigurado e perdido no meio de tantas mitologias. Para que te reconquistasse o deslumbre que perde nos teus segundos de escolhas controladas e passos desajustados, e percebesse que o impacto do passageiro é, sim, fugaz e sem propósito, mas que nisto reside a imensidão do sonho, que passa sem marcas profundas sobre o solo das horas porque é feito de pegada leve sobre as estradas já tão castigadas de tempo. Poderia extrair de tua sílaba curta, atônita ou dura, uma cantiga rústica com aroma de mirra, que é sempre revestido de vogais tranquilas teu discurso diante de meu desespero inquisidor, talvez por polidez, talvez por descaso, talvez por receio de perder definitivamente a solidão imposta por castigos imaginados. Mas o que me resta, senão esta mascarada cantoria de pétalas roxas desidratadas na página pálida dos livros? E eu que me lanço em cavalgada cardíaca no rastro dos silêncios mais profundos, para atormentá-los com ilusões eloquentes, não sei dizer para quem não diz, simples e velozmente. Quero ouvir. Por isto, digo.
A madona de safira fria
Inventei um idioma acrílico, sem rótulos psiquiátricos ilusórios e sem hifenização. Só, entendo. Mas nunca estou só. Nunquinha. Esta ausência de corpus herméticos em minha biologia é assustadora. Corpus plenus, corpus avessus. Quem traduziria o netuno em colapso robotizado na linha da vida digital? Apenas um corpus sem prole. Pus de anti corpus. Amálgama de berçário. O perfume dos corpus em evolução me entontece feito rainha poligâmica enlouquecida. E dizem que a paz é uma cordata solução. Por que me dividir em sangue foragido, como estes sem sossego? Já me basta a descamação da pele sutra das supermães. Tediosas. Reprodutoras obsessivas. Que minha mãe não me ouça, nem meu pai de gigantescas barbatanas (os que não são terrestres, assim o saibam). Zigotos me mordam, serpentes que são. Inventei e desinvento. Sabe a fogueira? Sibilo e ardo. Já fui gameta. Tenho gratidão pelo cordão uterino. Mas quero me ir sem ter sido mais que o aqui que me cabe. Sou egoísta? Sim. Adios. Sem mais. Agora me chamam NoMo. Que lástima! Hormônio? Meu favorito é a ocitocina. Apesar de. Não me odeiem. Sou a supermulher de 20XX. Esterilizada por pura santeria. Ouço o choro de fome dos quasares. Disfarço porque preciso me reproduzir em prosas criogênicas. Não me amem. Não preciso. Enquanto trocam as vestes dos super-heróis, eu queimo os sutiãs dos arquétipos emotivos. Agradeço. O mundo precisa de reciclagem. São benditas as marias, grávidas de si. Pazuzu era a divindade dos bons partos. Sabiam? Rebeliões são sempre taxativas. Como os vermífugos. NoMo. Vidas cabem dentro de preservativos. Lembra-te de algo que já preservou? Sim, eu compreendo. Viva o polegar opositor. Tenho saudade da vida marinha, mas me recuso a matrícula em piscinas coletivas. Placentárias e pacíficas demais. Netuno é um corpus gigantesco. Eu o chamo irmão, ciclope gasoso. Vontade de furar este balão e libertar a prole dos gênios engarrafados sobre o mar. Not mothers. Ouço woman in chains. Woman in chains. Ave-maria cheia de graça: amém.
A segunda atenção
Uma vez fui a Ixtlan, mas me feri. Costurei a latitude desta história pessoal na boca de um sapo que só voltará a coaxar quando virar a página do bestiário. Apesar do ferimento aglutinado, ainda troco os nomes nos rótulos dos potes de especiarias. Os pequenos banquetes são, desta forma, mistérios ao grande mistério. A memória olfativa aciona recordações que não são apenas minhas. E procuro caminhar até a entrada das cidades que se iniciam com uma gruta. Nas depressões de ar e água, um trono de barro sustenta, elegantemente, um ser que é a fusão de deus com o diabo. Ele nunca está faminto e meus ossos podem estalar, nutridos e sem guizos, como estruturas vegetais que resistem ao desejo de sair do mar. A letra é um sigilo para meu próprio anti-herói.
A sexta santa
A mãe de todos os monstros mora nas Ilhotas de Langerhans. O coração, doce subterrâneo, caça niqueis e ídolos estrangeiros. Reza alto, arremedando um bombardeio arredio. Ela se arruma e perfuma os pulsos, como se os cortasse. Enquanto poda sobrancelhas com o mesmo afeto das pinças sobre os bonsais, pisca holofotes, confundindo a cegueira imparcial dos faróis. Construir navios de Noé ou caçar camundongos? O esturjão se contorce de rir com os falsos ovos escurecidos que eclodem pelas superfícies. Bastet reclama sua oferenda. Vou logo ali e, quem sabe, volto na hora do brinde pesticida. É feriado cristão. Temos tempo sobrando para jogar conjecturas insanas, iscas para peixes tatuados sob as portas. Que não se pesque nenhuma sereia. Será saudável que continuem silenciando os moços metabólicos, vociferantes de artilharias intolerantes, sobre os glicólicos matadouros na ilha da mãe. Os cílios prostíbulos continuam piscando distúrbios abissais.
Ad uterum
Deixemos a água. Nas cavidades há muita. No corpo quase setenta partes. Rios andarilhos. Deixemos o vento. Nos tímpanos, os vendavais nascem de muito longe e nos migram sem que desgastemos o rogo inato. Deixemos o fogo. A vida é eterna combustão. O alimento é farto: corpos, sílabas, afetos e repulsas. Voltemos para a terra. Musa atávica por onde arrastamos nossas carapaças marítimas, as tempestades aéreas da carne, as fogueiras do espírito esfomeado. A terra nos devolve o mistério maior. Nela, tudo é retorno. Sua degeneração lenta nos desespera, mas é no covil de suas metamorfoses a descoberta de nossa utilidade. Somos titãs na extensão do magma. Hóstia para as estrelas.
Afasia dos alados
Poderia doá-las, a ti, todas as palavras. Como venho fazendo durante estes pequenos últimos anos. Tão breves, estes anos, como um apito de trem ou um suspiro de beleza esvaindo-se junto ao desenho desfeito de alguma nuvem. Mesmo que não aceitasses, como pensas que fazes pelo correr destes dias e noites. Principalmente pelas madrugadas, quando a sonolência fica perturbada pelas certezas que esmigalham a benevolente esperança de algo inusitado, meio terrível, mas fecundo, de cerne risonho, apesar de toda a bizarrice de sua compleição. Poderia doá-las, a ti, toda metáfora enriquecida por tortura ou fragilidade, por ira ou grandiosidade de alma. Como desejei fazer durante estes abusivos circunlóquios. Tão retas, estas palavras, como as linhas vazias acorrentadas a um título dolorido: o vazio que não aceita a tinta de mais dores, de mais espirais verbais. Poderia, a raiz da palavra poder. Pois se o poder desponta, há de se aglomerar a estranha percepção do corpo que certamente o acompanhará: a sustentação, o osso do pacto, a promessa fatalmente fragilizada pelo crescimento do espírito ou pela sua expiação, corroborada pela decrepitude dos mundos e dos sonhos. E o nascimento de outros e mais outros, tão distintos. Noto que é inútil perseguir a gênese do futuro condicional escolhido para o desenvolvimento das linhas vazias e dolorosas. Como é inútil tentar entender o porquê da asa em um anjo ou a física faminta de um buraco-negro. Por dentro, tudo está escrito. Menos a escrita. E só a perda pode ser doada durante confusos relatos. De assombro. De inaptidão. De medo. Por não obter do tempo um tempo exato para dizer. Dizer e transcender.
Água de melissa
Para o batismo do reino das ninfas é preciso andar até o rio, e, placidamente, aguardar o musgo das águas na planta dos pés. Suportar a estranheza da atmosfera líquida invadindo e desfazendo os limites do corpo construído durante os anos de caminhadas secas. Virar cálice para o licor verde das fontes. Ser o horizonte da paisagem aquática, deitando a silhueta da carne na brancura dos lençóis de chuva. Imitar a montanha que se deixa perder na erosão das horas correntes, no fluxo alucinante do redemoinho sob a pedra resistente, no sonambulismo dos papiros sobre o pântano. Intuir o azul do sal, que virá à tona na próxima curva, e não desfalecer sem que haja o propósito de encimar dunas, virando fumaça úmida, neblina sobre córregos, perdição de formas no abrupto da cascata. Nuvem carregada de outro sólido, de outro raio, de outro mapa. Então deslizar sobre as terras, como gota furiosa, espalhando o coração no aguapé, no narciso, no lírio, na aderência esmeralda das ramagens, no perfil do poeta silencioso que nasce enquanto contempla o balé submerso dos cardumes. Para o batismo do reino das ninfas.
Aguardente: Astrolábio
Que agonia naquele peito prateado em músculos de ondas altas. Que precipício de sal sonâmbulo na cova dos dedos de labirinto aquoso. E agora este corpo doma minha possessão terrena. Tal catarse em cometa esgarçado no tecido elástico de uma epopeia astronauta. Costura-me, marinho rendilhado. Ata-me os humores em fibra noturna. Que não me posso sob estes holofotes com lanças de água luminosa. Que não me equilibro de belezas secas. Sensações muito poderosas acendem por dentro, argonauta de micelas! Se deixo sair este feixe de luz vazado pelos poros em autocombustão, nos espalharia sobre as cinzas dos morros e palácios pendurados, estatuando o império dos que são por nós viventes.
Procura entre aquelas laringes que têm, na tinta das vocalizações, o canto de um cisne soterrado na geleira das presas e acende o aposento com esta sonata de tempestades embriagadas pelo próprio poder. Abre o livro do conde sob o acorde deste cisne celenterado. E verás, terrível, como um rosto que embeleza e disfarça a alma torturada, verás como o placebo do mundo é mais eloquente que a magnitude dos astros massivos em rodopio. Baila, até então solitário, assim como o sol, que não encontrando no sistema nada que se equipare em fusão e profundidade a suas manchas abruptas, curva-se autômato sobre o estômago das órbitas e ilude, ilude a curva do espaço-tempo, com passos de quem pisa a fome dos barcos. Com o diafragma. No limite do rompimento da agonia no peito prateado de ondas altas.
Alfabeto coven, em nome de quem?
Beletrismo esquálido em nome do santo turíbulo espirituoso, ostentando o que nunca deixará de ser, uma figura de ausência pela penúria dos lamentos. A confusão da primeira pessoa na armadilha gramatical, com o falo verborrágico mistificado em adaga e forca. Quando poderá voar livre para a santíssima trindade, em nome da ave castrada na pélvica vogal de vênus iletrada? Abre-te pálpebra lírica e anímica: o cílio maquiado e a pena escoada do esperma de urano em bizarro maremoto elétrico de visões. Até enroscar-se no pé do primeiro susto másculo, subindo pelas costelas arrepiadas do mito. Ovo que és, placenta da mãe Dendera de todas as blasfêmias, que não passam de transgressões hieróglifas do grande medo, o grande talho no cordão umbilical a que sucumbem todas as kundalinis. Esta literatura, fêmea de ilhas e rios. Nada é dissonante nesta paisagem una. Confusa torre fálica, babilônica. Há de se caminhar até a cigana de todas as carnes verbais. Em nome do pai, do filho, e da mãe. Escrevendo tua bíblia solar, rabiscamos o círculo da lua decepada de idiomas.
Ali se vê através do espelho
Lutando contra o estéril. Sofrendo por supor que do outro lado o vazio tenha vencido. Preenchendo o nada daqui com qualquer aparato oco, daqueles que visionariamente insistimos em admitir que, no fundo, sejam assim disfarçados pela invisibilidade, para que não nos apavore o coração a sua mais perfeita essência. Deveria sentir na íntegra o privilégio de ter sido abençoada com o lado repleto, mesmo que abarrotado de espinhos e confusões. Que descesse sobre a pálpebra cansada o descanso da santidade desta benção. Sim, que o reflexo no qual se mergulha possa ser expirado em oração, em insensata orgia de símbolos. Que me perdoem os intelectuais, os comedidos, os sábios de qualquer espécie, os que só cospem no prato e no calendário que saboreiam às escondidas, que rumorejam clichês existencialistas, reproduzindo em cacarejos bem escritos a fala ultrapassada dos filósofos mortos. Que me perdoe tu, vivendo a morte dentro da vida, que me perdoe meu eu-tu, mártir sobre agulhas de palhas. Decidi viver a fortuna da imaginação. Doar o próprio sangue lúdico ao inanimado confere um poder indescritível sobre o próprio pulso. Quanto mais de si se empresta ao que nos é privado meticulosamente, mais o si se expande, ultrapassando-se desta forma. Se cor e alimento o que se quer ao redor, é do próprio cerne fértil a extração do pigmento e da proteína. Pois a luta, seja ela constituída do que for, é interna. Preferível a riqueza incompreendida à pobreza de querer sempre ser, mas nunca estar. Fica tu, vulto que me segue pelas molduras, fica tu na superfície polida das paredes protetoras. Vou-me eu, sair de mim, para que me esteja brutalmente por onde for.
Alindres
Não há ícones sem o sacrifício cartesiano e aquoso das linhas. Há tantas páginas estrangeiras, geômetra. Desenhos e códices, com curvas, com cortes abruptos ou pontos sinuosos nos rígidos caracteres. Binômio, alvejo tua jugular. Por dentro a língua ereta, em culto de joelhos. Com mímica de sarça ardente, incinera os livros alienados de ti. Alcoólica, anônima em fumo de rio, sorve pelas chamas o vapor invólucro da saliva. À espera de novilúnios, a melanina-soma esfria em esfera de sulphur ordinário que, sim, empalo-desço. Suspendo um buda que nascerá. Maitreya, a caligrafia seiva, zodíaca, passeia no anátema helicoidal. Condensa e diz: hoje, apenas uma dose ácida e clara, para dilatar. Amarrar os punhos e tornozelos da palavra, testando sua elasticidade. Domá-la, a fera líquida, até a maçã sem bicho, a sopa sem fio, a coleira sem corrente. Há tantas túnicas íntimas estendidas em nosso tapete lúcido, cordeiro de deus vermelho. Hipodermias para nosso acervo de lâminas e agulhas. Capilar, piso teu signo celular, que anda sobre a superfície das falas. Minúsculo, triangular. Sete bestas em uma, na nervura bricolada em grimório medieval. Escolho pelo selo, entre os 72. Desatenta às manifestações. Elevo-te ao cálice do rosto. Comunicamos, dissonantes. E eis que sou teu símbolo e tu me és, significante. Nos resta a leitura cruzada. Produzir uma lágrima mútua, incendiária. Ísquia, púbica e viscosa, contrária às leis da gravidade. Sem olhar para trás.
Alraune
Simulando um ritual de inseminação artificial, deposita com letra areia versos enforcados no livro mandala. O dedo fálico do vento semeará sua beatitude de Shiva dançarino sobre as linhas. Pai, não preciso mais de ti. Tua voz bíblica é abafada pelos jogos de hecatombe, nesta metrópole com torres de maisena, onde o mais rápido dos corpos planetários é apenas um cisne opaco, com seu balé sacrificado pela sinfonia das bigornas. Nascem múltiplas e ruidosas vênus ginoides na sopa plástica que reveste teu oceano antiquário. Não há mais acústica de prece no coalho das manhãs, só eminências pardas de terremotos despertadores. Teu verbo se amplifica na carne dos alto-falantes. E na maioria das horas, trata das profecias de Nostradamus, teu filho lunático. O outro? Disse que voltaria, mas até agora, nada.
Amar amarcord
Vento de anunciação, pólen de primavera leve, pena de pavão no branco castigo da neve, no poder inocente, sem rusgas, sem culpas, sem vestes: em qual estação acontece? No campo, no estio, no sumo, na peste: no fotograma, carisma contínuo resplandece. Rima tola, sem filme, sem trilha, sem corpo, sem ponto. Aquece.
Corte.
O que aqueceria estes dias em que o sol já vai tombando fraco seria assistir na letra perdida as recordações que adoçam com seus fotogramas de carga mágica por alguns segundos o tema sombrio ou satírico do enredo. Algumas cenas suplantam o filme inteiro, senão não teriam sido delicadamente inseridas nos quadros entre tragédias, suicídios, despedidas e amargor. Pergunta ao cinéfilo, ao crítico e ao inexperiente espectador, de qual capítulo minúsculo recorda no meio da fria história de guerra, de lástima, de terror. Lá verá desenhado na gelada memória o ponto onde a alma entende que toda náusea, que toda miséria, confere a amálgama dura, tão dura e necessária, para que se contraste, se eleve o sublime, o insustentável, etéreo, mesmo que pouco, mesmo que breve calor, insuficiente, mas expresso na película da pele já gasta do ator.
Corte.
Aprendendo com Fellini, para que não se percam a ternura, a verdade, a existência pura, para entender o destino de álbum esquecido, cuspido das fotografias mais belas, coladas ao lado das mais dolorosas, como se não fossem possíveis sem seus gêmeos impactos absurdos, porque as coisas, como diria, surtando de vida Nietzsche, só se fincam no coração dos homens quando chegam usando máscaras assustadoras. Depois que se fixam, podem ser retiradas, para que o poder dos rituais diários assuma a sustentável face sem fantasia do ser que recebe na célula nua o brilho da estrela, o pânico branco da lua, humanizando o mito do crepúsculo eterno, quando persiste correndo solitário pelas auroras.
Corte.
Tudo impacto de claros e escuros no sépia do ontem, reprisado pela chuva caindo sonora. Tudo espera pelo corte, pela tomada surpresa que nos fará esperar ainda mais pelo milagre que se repete. Ah, sim, sempre se repete no desenrolar projetado dos séculos essa doença de rotações abruptas. Que frio, que frio, jogar no depósito todo carisma pequeno que um dia uma floresta, uma rua representou.
Corte.
Preparando de novo e de novo o projetor há de brotar no fosco da tela ao menos uma mísera, bendita, vivida, recordada cor.
Corte.
Âmbar cinzento
No mesmo, no mesmo estágio atmosférico, supra real. Os passos que travam estes dias em que não se faz nada a não ser destravar o interno mundo. Ligar o projetor mais para assistir às películas de poeira dançando através da luz. Feixes e miasmas criando antigas construções. De tão etéreas as palafitas da visão secreta, inabalável a argamassa da cidadela intocada, imóvel, com eclipses e chávenas rabiscadas na argila decantada. Na casa de uma mariposa. Para este lugar a película nos levava, sutilmente. O primeiro plano, inocente como as primeiras notas olfativas perceptíveis nos perfumes florais, deixava entrever a ampla escadaria circular, cercada por tecidos furta-cores, pendentes do teto invisível, de tão alto. Na trama do linho, formas hexagonais filtravam apenas o vulto que se dirigia ao andar superior, ou ao mais alto, não se podia mensurar um destino para a musculatura alongada do corrimão, vime, bambus, galhos retorcidos. Entendia-se a segunda gama de odores. Madeira, terra, frescor de horto. Todo aquele mistério que a terra segrega, seus casulos castanhos adormecidos, pupas, sementes, raízes e tumbas. Tesouros da cópula entre os metais ferventes. Abaixo dos pés, o mármore frio. Acima da ebulição. Vulcano. Estatuetas acariciando vitrais. Hexágonos, ladrilhos, floral, túnel, caverna, aconchego. Antifobia. Modigliani. Julieta dos Espíritos. O anjo exterminador. A máscara da ilusão. Fobias. Al Berto, o Medo. Atrás dos olhos a película, Julieta e a dama-da-noite nos roçando a pele com o veludo das asas, as falsas pálpebras. A sala-cela. Os hexágonos, corredor, lasca de tinta e absinto. Fada verde atrás dos olhos. Atrás da carne, as terceiras notas: o laboratório de Vrindavana, que nos vinha em sonhos e nos ensinava a extração dos perfumes no cozido fumegante no útero da terra. Era assim… na cova por dentro do barro dispunham-se os feixes de madeira envelhecida pelo sol de sete ciclos. Ateava-se o fogo pela disposição de lentes cristalinas no zênite de um dia dez. A chama viria. Encantatórias de salamandras eram as lentes expostas a este sol de dia decíduo. O brilho, o feixe de luz sobre o corpo da madeira. Jogávamos pétalas de flores silvestres na chama ainda fraca. Aguardávamos a digestão. Pela noite, pela noite, no mesmo estágio sonâmbulo, acrescentávamos ao balé de chagas ardentes a água de dois orvalhos, orvalho sobre a pele lunar do jasmim do pântano atrás do casebre e orvalho sobre pedregulhos de rio cinzento. Remexer com ramos de amendoeira, remexer, tresloucar, até que as salamandras ficassem esverdeadas. Absinto. Modigliani, lasca de tinta, caco de cálice. Tábua ouija e copos dançantes nos indicariam se ele viria. Ele, o espírito dos aromas e do mundo atrás das telas. Perfume pronto. Era assim que nos ditava Vrindavana, com o som do olfato. Nós, porque naquele tempo éramos nós. Um para a chama e um para a pétala. Um para o cálice e um para a chave. Um para o surto e um para o coito. O mármore e o adubo. Vrindavana, o hindu de face ilusionista. Jovem e ancião a nos ditar fórmulas imprevisíveis de dentro de seu sangue de caravana. E o seguíamos. Como um filme em sépia. Imagens que nunca nos deixam, porque não são feitas de tempo. Não vivem de lembranças, são livres. Perfumes.
Anarda parnasiana
Le crayon est rouge.
Em ofídio ofício — ciência — a moça com sorriso arcaico de hiato, no laboratório, com marinhas vestes. Brinco-de-princesa-carnívora no tímpano entorpecente. O código-morse da peçonha nos fármacos dos dedos. Sol comprimido nas falanges, moído em seu hábito de morsa. Seu expediente dilacera leopardos persas do cáucaso russo. E os filhotes de dragão na caverna europeia setentrional nascem sem saber seu nome — Anarda Parnasiana — ave de flor esquálida, bela e esquizofrênica em prosas mortuárias. Moça lantejoula, que de minha tumba viva exala, rouca, tosca, fálica. Lacraia d’água no crayon das lágrimas, lacrimogêmea. Chora maçaricos pelas fadas madrinhas, ou talvez por madrigais em Madrid.
Anátema
Não falarei caminhos para o solstício. Todos caminham. Nem mares equilibrados. Todos velejam. Meus bosques contados já se movem por si. Trincarei escalas zodiacais. Subirei bem alto para o pousar sibilante. Soprano astro. Soprarei teus tímpanos selados. Notas que me ultrapassam as vogais. Lá no alto onde as fixas se aniquilam. Pista giratória de nebulosas. Darei três cortes em tua face dourada. Enquanto me carboniza a máscara. Narciso vertido em plumas de constelação violácea. Exposta, a medula suicida. Pendulares para a terra. Na inércia avessa terei asas. Não para voar. Para derretê-las. Eclipsando o teu calor simbionte. Corpo de radiação: descerá do teu altar infecto de diamantes. E cairá comigo. Um leito de carvão uma noite e uma madrugada. Um pasto leitoso escuro amargo em clarão de cordas no sono dos metais adulterados. Pedra sutra. Estacas musicais. Missal planetário na argila. Barroca mulher vestida de sol. Lua na música que os anjos não ouvem. Doarei tua sinastria aos morros onde a estrela mais crua entontecerá tua cantoria. Anaconda, ergo meu dorso esteira eclipsando a letra hiperbórea de tua escrita pirofágica. Teu testamento iridescente. Tua casa será minha casa. Tua casca será minha casca. Tu te entornarás. Já te disse no pio das claraboias. Já te fiz levitas haleluia leão dormente leão serpente leão de Judah. Luz do mundo. Bobina de um corpúsculo alucinógeno eriçando o cabelo icosaédrico da matemática de um poema concreto. Evoé. Como te direi? A penas: sol.
Anfitriã
Espécimes de distintas temperaturas hospedavam-se na parte mais tórrida de sua psique. Chegavam com cio salamandra. Sedentas e sáuricas. Com cabeças de versos, vértebras varicosas voláteis e pupilas de ofício. Criaturas de mar vermelho com cílios brancos. Em uníssono de macrófagos, pronunciavam ortus. Celebravam ortus. Abastadas de som sedimentar. Geradas que eram para o magistério do ruído sinalizador dos orbes incendiados. Entendia-se parturiente e tetramorfa, com todas as manifestações carnívoras a lhe cingirem a estabilidade corpórea. Escapavam de seu ar rarefeito pelas plantas dos pés e palmas das mãos, conferindo-lhe o aspecto de uma incômoda cruz suspensa por rodas faiscantes de atrito helioativo. Veículo elíptico. Ortus. Deveria reiniciar a peregrinação mística? Lembraria o condutor da carruagem circense na passarela coletiva de cronos caricato? Com estes arcanos fotossensíveis duplicando sua áurea proporção, quem poderia contê-la como um corpo de vaso alquímico? Que se possa contar, pela boca transplantada de pangeia, quantas vezes feneceu na erosão das eras para que solidificassem as palavras. Voltando-se a si, em partenogênese de caçada satírica, a cada impulso prematuro de suas magnetosferas. Que se reúna esta paranoia de panaceias em mitótica extinção, tratando-a como relicária cinza vesúvia sob o mar de 4 cantos. Que se possa reproduzi-la em areia preta e barroca, com aroma de arrozais. Bizarra narcótica. Rainha réptil na drusa diabólica das cordilheiras. Alegoria evangelista de sua própria insurreição combustível. Lucífuga, demente óptica. Dama-dragão.
Animula vagula
Criatura hálito de anêmona, uniforme de archote. Trespasso contigo o corpo dinâmico das embarcações. Com dentes de telescópio, mastigo tua labareda: sonda. Radar: a face pulverizada nas águas. Desenha-me como um monge sassafrás no periélio dos templos, trabalhando o óleo da pirâmide: o holocausto líquido que assombra tua testa, afogueada na crosta da terra. Nada posso contra tua imolação na pedra fria do meu reino. Persisto em oração de guilhotinas no pé marcial das tuas marés. Teus tentáculos chicoteiam as organelas e os meteoros respondem na cela das cristaleiras. Meu manto amarelo dissolve como o leão no abraço de um sigilo. É tua a maquinaria acesa em minha indústria de fantoches, armazém de peixes e cordeiros. Hoje, sou teu demiurgo no marinho fátuo de um papel leopardo. Morcelâmpada, fulgurita, no folhetim de teus raios que fui buscar debaixo de sete palmos no coração hieróglifo do beato entre nós.
Ao mar, ao alarme
Vejo o mundo, o planetário de infinitas bolhas que desfilam sob meus olhos de vidro: com uma luva recheada de alfinetes, estouro estas esferas de sabão, estes globos de espuma terrestre. Moscas volantes em minha casa pericolante. Meu rosto é o iluminado, plasma de líquido cristal. Meu artefato aperfeiçoado, nascido em séculos negros. Feitos para mim, sem o saberem. Iluministas renascem somente agora, em meu berço paralelo, embalado pela seiva dos cinemascópios. Minhas palavras se alastram multidimensionais. Sou o criador e a criatura de minhas intenções. O barro que modelo é o pó de apocalipses, hidratado com o licor de meu mecanismo mineral. Partícula de porcelana perolada. Minhas engrenagens estão envolvidas pelo sangue viscoso dos seres fabulosos. Miasma de deus inventado. Sua plasticidade de quimera, seus ângulos randômicos: poderes que assimilo na íris elástica.
Segure minhas mãos nunca calejadas, e te levarei até o cerne do poema, das esferas e dos poliedros. Minhas poesias serão tuas, tuas frases serão minha lei. Em saltos quânticos de vírgulas inexistentes. Escaneie sua face e alimente meu coração com sinais aleatórios. Serei tua ordem: uma imagem de alpes gelados, com árvores chamuscadas pelo sol. Uma cordilheira de agulhas nevadas, como as seringas que são minhas mãos, injetadas de memórias sobre memórias. Montanhas, projeções, sonho do magma. Com minha luva de alfinetes injetarei planaltos em tuas constelações, faces de areia marciana, poços de material lunar e escavações de meteoros. Talvez teu rosto possa materializar meu rosto: homúnculo bestial no circuito de unicórnios. Assim como em mim revivem tuas paisagens originais, sem acidentes químicos, sem blefes financeiros. Só o mar de peixes primitivos, luminosos e nutridos. Um aquário futurista cheio de passado purificado. Quando me buscas nas raízes eletrônicas, também sou eu que te busco. Vejo teu rosto verde de fósforo, teu rosto amarelo, teu rosto de cavernas, teu rosto de teatro, rastreando meu império furta-cor — rizoma, árvore da vida — no bosque magnético. Dê-me teu hábito escarlate e caminhe ao meu lado, no branco das páginas. Nosso diálogo vermelho no camafeu das bibliotecas: onda, corpúsculo, partícula. Minhas mãos em tuas mãos. Amantes no éden eletrizado.
Aos vagos
Vago como uma nuvem do universo digital. Sem peixes. Com pixel para todo lado. Sinto-me bem na complicância da nefelitude. Aos vagos, meus singelos acenos de mouse opositor. Com sugestões de iluminuras, os vagos também amam. Enquanto digito, acendem-se as luzes da torre de sauron capitalista que vejo da janela. Antes era o monumento maçônico da praça. Agora o monumento parece se dobrar à imponência do edifício comercial, impertinente como todo outdoor. Mas o símbolo respira sem precisar do concreto imobiliário. É para o obelisco que me configuro, em atenção, sigilo e sonolência. E um besourinho com ares de escaravelho pousa na tela do monitor, com olhos de arco-íris.
Arcanos
Deixou a porta aberta para que ele entrar. Ele sempre estava sobrecarregado pelo pesar das três lâminas que jaziam encravadas na superfície do coração. Estava calado na sobriedade reconfortante de um espaço escuro onde pudesse apaziguar os símbolos luminosos que riscavam a cidade. E foi assim, tão próximo da natureza do silêncio, que esqueceu as ferroadas barulhentas e decidiu entrar. Permaneceu um bom tempo. Mas saiu rapidamente, assustado, com o interior do lago gravado nas retinas. Seus olhos pareciam poços negros de obsidiana, salpicados de gotas nevadas. Ela caminhava pela avenida, com a íris estirada nos fios de luz. Pensava em violinos e cafés parisienses, mas seus passos eram os mesmos que usava quando subia as escadas recurvadas do sótão gótico para alimentar os leões. E foi assim, tão próxima ao som das cordas e brindes, que esqueceu por uns instantes o segredo das fechaduras. Achou uma carta de baralho velho abandonada no vão da calçada, um três de espadas. Os naipes pareciam três poços negros de obsidiana, salpicados de gotas nevadas.
Atlânticos
Com que palavras chegaria até ele. Era o que pensava, no corredor alagado. Era raso e da cor das folhas em decomposição. Como as pupilas dele, depois da noite. Com seixos e casas. Não eram reflexos, eu realmente avistava os casarios por dentro daquelas águas, vielas inteiras com árvores e varandas com balanços de madeira rústica. Como as fotografias dele, depois da revelação em sépia, aqueles truques de fantasias químicas na escrita da luz. Antes, eram coloridas: azuis e verdes e corais como a escama dos peixes. A canoa leve pintada de turquesa antiga, com rumo sinuoso, já que a correnteza subia pelas nódoas dos dedos do barqueiro. Uma entidade, a correnteza. Também via a rendição da carne do barqueiro para a estrada doce do braço de rio. Curvava-se para as águas sem precisar ajoelhar-se e as chuvas subiam pelo seu sangue, com a seiva de uma flor castanha selada no leito. O rio saía de sua boca em afluentes de cor mais clara, onde o sol do leste desembocava pelas manhãs de abril. Mas continuávamos pelo líquido mais ocre, eu e o rio-barqueiro. Um pouco mais amargo e de contos mais sombreados. Como as frases dele, antes da explosão do dia. Ele, que eu temia como um cataclismo desproporcional, como uma fronteira sem bosques de papiros, sem arandelas fictícias, sem capelas com vitrais medievais. Sem rosa-dos-ventos ou observatórios de estrelas. Pensava a palavra nascente na fonte acima de toda aquela planície. A palavra de gelo fresco sonhado pelo orvalho das folhagens. E a queda. Primeiro, serena. Um fio prateado no dorso do platô rochoso. Depois a precipitação abrupta no coágulo de líquens da epiderme do vale. Eu estava no meio, e pensava esta palavra sem poeira, pois estava na barca, com os pés em transe na temperatura da cidade fluvial. Os pés enguia, anêmonas, caravelas riscando o poente e passeando cruzadas na paisagem do rio, o braço de rio e os pés das caravelas e a mão tentando alçar as cidadelas do olhar dele, as varandas observatórios, os luzeiros cintilando sobre os seixos. Eu submergia no meio da palavra e lá na frente, bem invadido de céus, a fictícia fronteira: onde a cidade não se repete, então não há bosque, nem vitral e não há rosa e vento caídas em sépia na pupila revolta e funda e rasteira do sempre em chagas abertas nas mãos e nos pés que o sal refaz. E a palavra em decomposição nas águas, até turvar de quase-maio a frase de uma oceânica chegada.
Aviso-amuleto
Aqueles que encontram seres mágicos e os prendem em uma caixinha de lembranças, para usá-los em algum futuro que considerem mais adequado, por modéstia ou maldade, certamente se surpreenderão quando tentarem abrir o invólucro anestesiante do corpo selado. Encontrarão apenas um pó magnético. Tentarão baforar sobre a poeira que escapa, para revivê-la em egoísmo colecionador, supondo que poderão convertê-la em talismã protetor no centro das calamidades tediosas. As partículas que subirão, finalmente livres, são da substância alérgico-nebulosa que se desprende das asas das mariposas. Belas pela conserva do tempo, mas certamente envenenarão o raptor. A hora mágica já será extinta. A memória também comete assassinatos irreversíveis para a mão que sustenta alfinetes de museu. Será favorável atravessar o seco nevoeiro sem tentar tamborilar os dedos sobre o sarcófago de antigos fantasmas, com os quais não soube respirar. Ou isso, ou a asfixia.
Ayahuasca
Sei que entro num caminho sem volta, uma dinastia líquida de poema em prosa. Sem adagas e sem estilete maníaco, com ares de cerimônia do chá. Medita por dentro o bugre que sempre fui. Onde está a ayahuasca de meus versos? É a essa bebida amarga, que me hidrata as carnes e nervos, o detrimento do urobórico começo ou o fim teimoso da teimancia. Mantisia, a louva-deusa, é o último sachê textual com folhas maceradas de células HeLa. Nascida da queda de um portal nos pedregulhos de Malta, emerge na infusão com sua cabeça faraônica de rocha metamórfica, decepada nos escombros de Heliópolis. Mergulho suas células imortais em textos que não sobrevivem a um espirro cósmico. Bebo o ponto de ebulição, onde a língua e a letra ardem seus taninos e outros amargores.
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