Barbatana e barbitúrico
A praia lembrava um desenho infantil, vertido de rabiscos móveis, mas firmes e lúcidos. Podia-se vislumbrar no traço o vestido do deus bíblico, com anáguas esmeraldas. Um deus sem estereótipo que não fosse o espectro da luz partido sobre as montanhas castanhas. Oxumaré, escama de arco-íris.
Atrás da camada de terra pontiaguda, nada se via. Relâmpagos no ar difuso, a aura coletiva do corpo ancestral de água que assombra o planeta desde sempre.
Como se movem nos sonhos, as entidades sonâmbulas dos corpos adormecidos, vagarosamente, o eu que sonha aproxima-se de algo delineado na encosta das imagens.
Vê uma cabana de troncos entrelaçados, floresta geométrica. Sabe a entidade, não sei esclarecida por qual sugestão terapêutica, que mora ali um garoto magérrimo, fino e elástico como um pensamento de meditação.
Não era totalmente desconhecido, pois o lembrava de outra atmosfera, esticando bandeirolas de mantras despedaçados na crista das falésias. Ainda tinha o mesmo espírito de açafrão e algo vermelho pontuando a silhueta. Mas agora estava ainda mais faminto e emergia da casa para caminhar pela orla da areia prateada, espreitando o alimento que viria do mar.
Através de sua carne de sonho, a paisagem. Somente no ponto onde poderia residir um coração, o vermelho se fazia intransponível. Pulsava ritmado com as ondas. Talvez as ondas fossem vivas apenas pela existência de sua circulação. Não importa.
Hipnotizado, o eu que sonha nem percebeu a mudança da velocidade, pois em fração de segundos o garoto saía do mar com um imenso tubarão acinzentado.
Ele o arrastava pela areia como se empina um minúsculo balão de gás. Paralisado pelo murmúrio assustado do eu que sonha, entre a cabana e o mar, o garoto volta os olhos ao sonho e diz, magnetizando a massa de ar:
— Este é o meu corpo hidrodinâmico e assim o concedo para saciar sua mísera fome. Minha caça é sua planície nutritiva.
— Aceitou? Indaguei a Ana, que me contava de seus instantes memoriais no leito de um hospital, quando em estado de coma.
— Estou aqui falando contigo, recuperada, não percebe? O que teria feito em meu lugar?
Beatus vir
Na noite tísica, percorrem minha óptica os pontos riscados no purgatório. Demonologistas decodificariam sigilos e seus corpos frios de entidades, esgueirando-se pelo calor das linhas com sua física de espectro corporificado. Consigo vê-los, pois já decorei seus manuais. Detecto seus dínamos, suas crateras tingidas, suas entranhas textuais. E chego a tocar, sob vontade, o giz ritualístico que arrastam pelo solo adubado do campo de concentração anímica. Como se pela psicografia de tumba pudesse ler a ressurreição escrita nas lápides dos mandalas. Saindo das mãos. Verbo, o anjo caído. Há redenção em sua fuga pela luz? Há anos que te persigo a correria. Quando te voltas para um sorriso constrangedor, decepo falanges, egrégoras e ósseas, e me disparo como a cadente que abandona o paraíso, precipitando-se no encalço do bosque de mirra. Então te posicionas em órbita desgarrada. E me projeto, pena de tinteiro digital, para fora da noite dos agonizantes. Um passo à frente de teu comboio malhado de cores, reticulados no prisma das capitulares habitadas. Aprisionados no terreno em que tu também deixas de estar.
Exortum est in tenebris lumen rectis misericors.
Cabra montesa
A cabeça de meu dragão é uma cabra montesa. Me leva para o alto dos pirineus. Raro encontrar companhia nestas alturas doloridas. A vista é panorâmica, mas o ar perfura e rompe os afetos do sangue. Mais raro ainda é emergir a sua cauda lunática, que insiste em tatear o fosso oceânico profundo. O corpo astrofatiado permanece constantemente esticado. Corda de circo. Não sei como a salamandra que anima o dragão consegue bailar por este fio de ventania que nunca se rompe, embora construído para a ameaça perpétua do corte. Se a cabeça e a cauda se enrolassem, a acrobacia aérea seria perfeita para a plateia urobórica. Mas seria o último show. Horrores são relativos. E uma sentença desliza no ecrã: a Capra pyrenaica pyrenaica foi completamente extinta em 2000.
Cantiga de mariposa
Vem, zéfiro do avesso, mergulha no meu cabelo o tapa estrondoso dos moinhos azuis. Não me levita pouco o teu sangue negro gotejando no dorso das catedrais. Força de minha força, coluna vertical de minha cruz, tortura de minha alegria, centro sedento da palavra branca. Venha agora do canto dormente de minha dor vermelha, de minha mente lilás, que a hora é do deus dentro da carne, que eu quero agora, esta hora, a carne deste deus na minha célula, o fogo de entranhas na minha luz, beijo de anis, pálpebra de pantera, colo de barro nos meus quadris. Erva viva, viva, viva adocicada, no meu signo, eclipse de romãs, na minha boca, apunhalada de ritos, teus ritos, teus signos de dentro das ruas, minando meus gritos com os gritos de tudo que em mim te chama: tua pupila, tua letra, teu vivo pulsante símbolo, símbolo, símbolo da veia dilacerada. Meu céu, meu inverno, minha estrada de améns, meu porto de lavas, meu cerne, meu verme, minha alma desesperada, suporte supremo, minha massa de estrela mascarada: tua víscera, tua sílaba em mim encarnada. Além, além, além do nada, tu, meu tudo. Tu, meu círculo assustador de fungos, tua coroa assim enluarada, meu contrário do luto, vem, que tiro do escuro, que minha voz agora nesta terrível hora é a encruzilhada do mundo, entidade de minha legião solitária, minha orgia, meu umbigo estilhaçado no mundo, no mundo, no mundo, meu astro, meu voo teu pouso absurdo, duende de partos rubros, vem.
Cantos do quarto 7
Humanos, meus fantasmas são quadras urbanas. Meus fantasmas são camundongos de longos corredores. Em cada esquina um luminoso. Em cada estante um ninho. A fruta do conde é meu alimento rubiáceo. Mordida pela nutrição da ciência, destes passos que me deixam o cabelo eriçado. Intuo o calor, ao me lançar sobre estas pegadas: celestes sarjetas, catapultas pelas vias sacras. Guardador de hipérboles, aqueço os pés no velocino espectral. Fricciono-os pelos panfletos, bulas incubadas, pequenas foices, partículas de deus. A argila que embalsama o estômago trêmulo e o tornozelo veloz, é feita de pó. Osso de rua, lombo de livro. Pisoteio e mastigo essas lombadas. Pela saliva condenso uma nuvem repleta. Prestes a cair sobre o rebanho do pavão.
Carta a um anônimo
Alto! Quem vem lá? Diz a que vieste! Não te nomeia a palavra hereditária consagrada a ti em batismo, pela qual respondes automático e moves os olhos rapidamente, depois as mãos e enfim, os pés.
Nomeiam-te os acidentes geográficos que trazes. Aquelas falésias, aqueles vulcões, as fissuras dos vales, as árvores encantadas no apocalipse dos lagos intermináveis. Uma estrada urbana com faróis. Uma alcova de cetim com máscaras vienenses na parede. Uma caverna de ursos polares. Um café parisiense. Uma sala com frascos retorcidos, um escritório de imperador. Uma doceria, um aquário, uma pista de dança, um manicômio, uma casa de bonecas de porcelana. O que trazes de tuas andanças pelas visões do mundo? Observatórios astronômicos? Conta destas estrelas, destes roteiros fenomenais! Nomeia-te esta paisagem. Mandala, cabala, parede rupestre, runa, altar de pixel. Mostra-me o local da tundra ou da geleira que encanta tua meditação, fazendo-a nome de nomes, canto de cantos, soberania, pequena miséria, transubstanciação.
Queres o deserto que vi? Queres ouvir leões cortando o diamante alucinado destas dunas, feito rajada dourada de elétrons no vácuo da matéria? Trouxeste a areia?
O que deste nome que dirás, e que será a chave para minhas chaves, tenciona ter como complemento, mitose, participação?
Porque te soletro: a paisagem que terás aqui, e que será meu nome, depende desta biosfera ensimesmada na tua cênica apresentação.
E no meu nome, teu nome. E neste conjunto, qualquer local deslumbrante inventado para a criação, a dádiva humana de exteriorizar a divindade da qual é imantada.
Um nome elétrico é sempre feito a dois. Qualquer nome que execute a perpétua transferência da luz. Qualquer mundo. Em qualquer segundo de respiração.
Diz a que vieste. Dize do solo que sonha caminhar. Alto! Iremos, quânticos!
Carta a um suicida
A mais perfeita forma de suicídio é deixar-se completamente vivo. Aniquilar-se com a vida. Deixar de ser. Estar.
A condição humana ideal não é apenas o perecimento diante das forças externas, políticas, sanitárias, atmosféricas. Trata-se de perceber estas forças que surgem no caminho, como gigantescos fantasmas e palhaços, reis decadentes, impérios sepultados, seja como for, repentinamente brotados do chão árido onde os olhos tombam suas íris alagadas de mágoas ou secas de deslumbramento. Perceber. Dobrar os joelhos à sombra destes vultos imensos e invocar a oração interior, até que a reza seja a música da voz interna, de timbre tão mitológico que todos os espectros e entidades exteriores não consigam suplantar a palavra sinuosa que os faz bailar, exatamente quando executavam sua mais carismática marcha bélica.
Dobrar os joelhos não significa, de forma alguma, acovardar-se passivamente ao julgo ou prazer de um poder que nos atinge com sua existência. Antes, ritualiza a postura meditativa necessária para digestão perceptiva e clamor simbólico. Se te aceito e ouço-te e se tua presença me intercepta, imediatamente também estou em ti, e se te fito, tu terás de me ouvir. Quando me surge como potência além de mim, respeitosamente, revelo-te o que dormita em minha mente: anjo, duende, feiticeiro, animal de poder.
Morremos, enfim, nesta estranha miscigenação de percepções fabulosas. Apenas porque vivemos o mesmo instante, nutrindo-se mutuamente.
A ação gerada por este mutualismo dependerá do aparato psíquico ou físico de cada um, desenvolvido para dinamizar o eterno confronto entre energias.
Ao interpretar a silhueta que me intercepta como algo intolerável, as forças que me nascerão serão também intoleráveis.
Não há metafísica esplendorosa nas intolerâncias.
Em minha ação, não há revolta, apesar da cólera frente ao clero, ao governo, aos monopólios. Minha ação é a saudação da força que estas parafernálias desenterram do fundo de minha própria alma. Não materializo guerrilhas, passeatas, grandes revoluções jornalísticas, greves de fome. Antes, a palavra mística, aparentemente inútil. Eis minha condição humana: a invisível e vocálica invocação, o diálogo supremo das consciências. A vida como um desenfreado espetáculo circense, onde a morte está no centro do palco, no ponto iluminado, caracterizada como um corpo pulsante, envolto em farrapos coloridos, dobrado sobre si. Orando.
O que vês em mim é o que deixa nascer de ti, matando o que somos para ser o que estamos.
Eis a morte magnética, perseguida e inalcançada por aprendizes suicidas em seus teatros solitários e materiais, embotados pelo sangue jorrado dos pulsos, miasmas gástricos submetidos a venenos e nódulos arroxeados na jugular. Digo-te, a morte verdadeira é o aniquilamento egoico. O cenário é límpido e silencioso e a plateia é universal.
Antes de subir os degraus da forca, desce as escadas de teu próprio subterrâneo e te diz, a ti e aos outros: bem-vindos ao sepulcro existencial.
Carta ao eu quântico assombrado
Entoo algum cântico inspirador para abrir a vênula literária e o verbo começa a jorrar. E despontam as lâminas, coisas de atingir coisas. É assim. Ferir, meu verbo de ferir. Eu não queria, sabe. Caninos rubros, estrelas assombradas, cones ritualísticos. Corvos também. E os leões alados que me perseguem desde criança. Eu os vi uma noite de febre, num desenho de goteira na parede e caí na ideia de os animar. Então eles nunca mais se afastaram de minha letra. E todo processo criativo começa assim: entoar um cântico inspirador e aguardar o rugido. E é um som de atabaque sendo brasa estalando festim de salamandra. Os felinos desfilam primeiro. Depois vão brilhando espadas e outras coisas medievais. E daí este tipo de disposição arquitetônica onírica me carrega para espaços amplos com perfume de bosques selvagens. Como os intuo pelo olfato, sei que devo caminhar até lá. Então me perco da maioria. Desvirtuo-me será? Do que me faz sonhar não, com toda certeza. Porque me sinto naturalmente bem situada nestes circos fabulosos de cores distorcidas.
Imaginei que projetando tua face mística no começo das invocações me transportaria para algum estágio menos larval. Sabe o lance bem batido de depois da metamorfose sopra a asa colorida azul-angelical-celeste, etc. Mas meu caro, acontece o oposto. Tua face mística no começo das invocações acelera de uma forma tão fenomenal meus simbolismos mais indigestos que até me dá um nó metafísico. Abrem-se portais expressionistas na minha imaginação. Atmosfera em sépia com flores que lembram garras rasgando o céu, como preces desesperadas. É uma coisa placentária, paisagem de planeta povoado por seres que não precisam de oxigênio. Magma, vidro vulcânico, peróxido corrosivo. Fadas pálidas com brilhos perolados começam a plasmar-se de um luar crescente.
Bem, depois comecei a perceber que estas eviscerações não poderiam ser atribuídas à tua face mística (que inventei). Porque meio que te sinto amor. E o amor como vejo é algo assim: eu te vejo como coisa boa e suave que me transpõe a lugares celestiais, leves, com estas coisas doces e meigas que as pessoas depositam tantos sentimentos nobres e corretos. Não é que te ame porque você me faz sentir-se assim ou assado, porque você desperta algo em mim. Não é nada disto, que isto não seria amor, seria jogo de reflexos. Vejo em ti uma face mística. Que me é sagrada pelo que é. E gosto tanto de tua tempestade quanto de tua calmaria, tanto de teu desprezo quanto de tua dedicação. Oscilar sem expectativas dentro de tua face é o que chamo amor.
Mas esta parafernália de emoções caleidoscópicas com cenários góticos que surgem depois de minhas evocações deve ser advinda de algo mais — como diria — fenotípico de minhas estruturas internas. Tu transpiras adjetivos iluminados, cheios de sol, vivacidade e imediatismos. E o que incito são paisagens apocalípticas demais para que tua face mística possa ser sustentada durante o desenrolar da trama psíquica. Pradarias de passado e futuro, onde um pode ser o outro sem necessidade de nomear o tempo existente.
Algo que não percebo se rompe. Pelas munições, entende? Se começo a gerar athames, adagas e versos espadachins é como se fosse uma autodefesa psíquica. E tu não deverias estar associado a este tipo de conduta. Tua face mística toma ares de oponente.
Então concluo que para que eu consiga escrever de uma forma suave e compreensível deveria extinguir a exortação de tua presença no início do ritual. E te livrar do peso que atribuo à tua presença cabalística em meu verbo. Então não teria mais vontade de escrever. Dilema dos dilemas. Viver-te ou deixar-me morrer. Perdi-me tentando explicar. Enrolei e contradisse-me. Avisei-te das coisas de ferir. Meus pulsos ardem agora. Meus dedos curvam-se como cimitarras marroquinas. E leões alados acendem enigmas no alto dos rochedos escuros refletidos em uma laguna prateada. Acho que não te amo. Tu me transportas. E daí que te esqueço em prol das cercanias do mundo. Que constrangedor descortinar isto. Espero estar equivocada.
Bem-me-quer. Mal-me-quer. Bem-me-quer. Mal-me-quer.
Talvez no ato de desamor que é a ausência do amor nas paisagens de meu entendimento, eu consiga destilar teu misticismo e somente no ato de te negar possa te afirmar. Como o cortejo da liberdade suprema pelo coração desapegado. Há esperança. Ela ruge.
Carta ao leitor
Foi longa a labuta, diária. No líquido agora que tu plasmas com todas as energias de tua alma erigi castelos e rotas sombreadas. Ora pontilhadas de vício. Ora rendadas de confabulações. Tu foste-me oráculo e resenha. Releitura e partição.
— Ah, deuses! Fora um halo luminoso abraça a lua cheia. Dentro, um asteroide corpuscular pulsa.
E me entendo ilusão de óptica. Refração da onda luminosa.
Emprestando a alguma perdida alma, um corpo magro que já envelhece, alguma vaidade boticária. Auréola esquizoide.
Rio-me de minhas ataduras psíquicas e de meu véu diáfano como céu de gelo estelar.
Espera: que te liberto. Já não há plateia. Já não há palco aqui dentro do asteroide que rodopia como um pequeno reino decadente. Continuamente adubado, é claro. Descarto a hipocrisia de dizer morto. Porque nada é morto. Tudo é reciclagem e continuidade. Continuum. Om que repercute. Opus operandi. Roda dos nascimentos. Nirvana disfarçado em renúncia e abnegação. Queria dizer céu e inferno, límpido e sujo, claro e escuro. Mas são termos tão revestidos de caminhos, que metaforizo. Depois precisarei deles novamente. Outro contexto, bem entende. Digo descanso e ronda, funcional e dissonante, elétrico e interrompido.
Hoje, hoje e hoje não me saem raios dolorosos da mente. Mas saem-me cortiços e cabanas pela saliva. Sinto-me um arquiteto de minhas loucuras, chagas e sabedorias toscas.
Sou um ser primitivo. Uma anímica e esbranquiçada divindade percorre estes casebres enzimáticos. E me digiro. Sou um protozoário fagocitando cistos da própria condenação.
— Ah, ser albino, mutante, sanatório de cores invisíveis.
Aniquilo-me porque fiquei ferido. Aniquilo-me porque fui abençoado.
Espera: que te digo. Voltarei mais limpo-funcional. E escuta: tu nada desencadeaste que não fosse advento de minha própria artilharia. Tu és limpo. Sou uma aberração cromática.
Despe-te na luz. És uma rótula aberta.
Carta da copista de fósseis imaginários ao crítico coração
Na cerração do dorso de água marinha da serra, enquanto a gangue da névoa guerreia, fincando adagas de fria prata nas poças açucaradas da porcelana, ordeno-te o que me dita a linha férrea da hemoglobina. Ordeno-te com a umidade dos cúmulos que soterram a coroa anêmica dos palacetes campestres. Ordeno-te que antes de cuspir-me a incompreensão muda de tuas pupilas secas, ouça-me irmã vocálica do morse que ricocheteia trovoada nebulosa em teu coração de trevas musicais, alongadas como as falanges de uma rainha primitiva bailando paladina no tablado iluminado de pangeia.
Já é feita a injúria anímica quando ocultaram dos séculos nefelibatas o nome da poeta do ignoto. Nomenclaturas são ordens que podem alinhar o caos e as formas geométricas mais incompreensíveis, portanto férteis para a plasticidade criadora da imaginação e dos feitiços de cura. Ao lembrar-me deste eclipse artificial e iscariótico, não arranco os cabelos, posto que tingidos foram por azul escárnio, premonitoriamente programados para impedir-me a execução do ato desesperado da mutilação incolor, a qual concede corpo e palco aos poderes corretivos da nevrose hereditária.
Com a fonética das iras, regurgito a lembrança do silenciamento mórbido ao espelho, deslizando no miasma da materialização deste umbigo de hóstia, tão frágil quando as sementes que não se encerram em frutos, tornando-se assim expostas à todas as intempéries, no aguardo cínico de um bicho esfomeado da floresta.
Mas eis que o bicho encontra a pinha. E pressinto brisas, floradas e clorofilas novas no bosque esquálido das referenciais condecorações.
Ordeno-te o nome, já que és igualmente norteado pelo costume da espada justiceira, cortando a venda da cegueira impostora. Se puderes o reflorestará.
Um demônio não pode recusar-se a dizer seu próprio nome. Mas não é este o caso, anjo sem asas. Trata-se de uma geografia ignorada, repleta de possíveis mapas e correspondências, náuticas e eólicas. Sem sobrenaturais intenções. Resiste a bússola perdida de magnólias em visão de terras pescadoras de naufrágio. Aguarda-te o terreno propício para o batistério que selará o mergulho das certidões sepultadas, que tão bem entendes. Nomes de ruas? Não, nomes de planetários.
O céu é lentíssimo, apenas uma sugestiva lamentação. O tempo mago dos ventos é a matéria palpável desta carta sem estrelas distantes. Que a névoa te seja manto, não muralha.
Cartas de simbiose
Bom dia, bom século. Silvaplana, o silvo de passeata robótica pelas omoplatas. Somente, sóbrio com o derretimento de seus minerais, vejo-te como és: nada, luminoso, a cabeleira plena misturada em osmose de horizontes. Portanto, belo. Faz-me assim, víbora mansa na troca de pele com o sol. Pois que saibas, silêncio de entressafras, o que nos ferve o verbo vascular é este corpo maior de nebulosa.
Fragmentos covardes, destituídos de estrelas, nada dizem com este estudo isolado de órbitas. Quando os planetas eram círculos perfeitos, blefaram os profetas? Nem a fotofobia pela cara redondilha da linha oceânica impediu o destino do magma. Imperioso de si, este manto liquefeito sempre guiou o norte cardíaco de toda química de irmandades. Combinações: apenas um instante interessante para a geografia maior. Depois, cárceres livres e corações deteriorados.
Que importa ao sono dos mitos galácticos tua pequena dor egoísta? Sentir-se só é uma desfaçatez criteriosa com retoques fatídicos de divisão celular. Nem tua escama mutante desiste de voltar-se como um antídoto sádico ao rosto infernal da imaginativa multiplicação. Te recrias infinito, couro e cauda, a cada maquinação de tuas misérias digestivas. Psoríase fantasmagórica.
Sublima-te, gás e lágrima, gelo e gárgula. Doa-te a algo que tua mente não abarca, perdido que fica na sonata das engrenagens astronômicas. Efêmero contrabando, és o que és, sendo-me polvo luciferiano em cosmovisão de longos tentáculos embaraçados.
Exige-me fidelidade de cordilheiras? Quem o disse que a telúrica sombra persiste em palco de angústia tediosa? Move-se todo pacto, além de teu ninho organoide. Rio-me desta promessa estável de geleira persistente. É como um mapa desesperado em disputa territorial. Como se uma cidadela traçada ontem só constasse no batismo de uma fábula. Quantas cabeças cortadas já não sondaram a pureza de uma hereditariedade? Eugenia, acuso se assim persistes. Enfado encefaloide.
A extinção épica em pia batismal já te separou da placenta de tuas ilusões imaturas. Não te fez correr com teus próprios pés este choque de ambientes? Silvaplana, silvaplana.
Acima dos desfiladeiros serás livre, sem implorar a nata fétida do limbo que acaricia todo espírito séssil. Só te tornarás visível a olho nu, se correr. Não temas o retorno inexistente. Este, não há. Convalesce, cometa silvando supremo no raio dos heliotrópios estereotipados. Tenho aqui mapas estelares embolorados que nunca me deixarão te esquecer. Escrevo-te longamente. Encanta-me a maratona perpétua da combustão destas parábolas, antagônicas e siderais.
Até breve, se não me fores breve.
Cérbera
Extraíram-me os dentes de lobo. Anos de jejum, em maresia mórbida. Evitando mastigar os pés lunares do oceano. Medo da baba espumante que corta a areia durante a noite das minguadas lunações. Olho-de-tigre em tampão nos tímpanos. Resistente e calada, a medusa lupina, atada pelas próprias cordas vocais. Quando a verbalizei, sem o pavor da resposta, um canino de Fenrir brotou espontâneo pela amígdala fantasma. Uivaremos, finalmente, siamesas no vocábulo das pradarias. Lacrem os estábulos, quando a lua guardiã armar sua embocadura musical pelas quarentenas. Lá estaremos: pelo, cio e archote. Mandíbulas fechadas não combinam com a renda comestível das matas. Não será a mulher que corre com lobos. Será a loba matutina, sem a sequela da lobotomia. Fio quarenta e cinco nas quatro patas. Fria e fúnebre, se fórceps. Cinzenta e grisalha, se prata.
Certidão de nascimento
Vivendo dores que não me pertenciam, fulgurei holocaustos. Realizei em meu corpo as profecias soterradas. Proferi a missa do éter. E me tornei tão noite que encontrei a cor de minha face inexistente. Negras unhas, sangue magistral. Nunca me fiz. Avesso avesso avesso. Aceitarei agora o embargo de outra travessia. Serei plausível. O que me ofertam: glória, favorecimentos, suavidades. Sem perceber que esta parafernália morna, ofício de normalidades, celebra cruz sobre cruz. Então serei belo. Vou morrer pela fragilidade. Justiça, como celebram. Batistério infindo. Martírio na via sacra. Exaustão por ouvir o ritmo da conduta nobre. Oposta ao meu sim. Vou ceder. Fecham-se as rendas, finas e perfumadas como páginas bíblicas. Nada quis. Nada tive. E era paraíso, meu inferno amargo. Abram-se, mortalhas de súlfur azulado. Estou exausto. Concedem-me embalos.
Todo cerne é criado, alimentado, incitado para o exorcismo bem-sucedido. Nasci, nutriram-me e fui insuflado. Estou fortificado para o ato pleno. Arrebento o mundo. Adeus, fleuma. Fui cativado. Gotas bentas me plasmam. Resplandeço.
Chama
O silêncio que existe para ser consumido, com muitas chamas. Toda palavra é um oráculo eloquente. Chame sempre que quiser ouvir. Sempre o chamo. Sempre quero ouvir. Sou uma adoradora de letras. Meu altar é um templo de rasuras. Meus deuses me respondem por dentro do fogo, são orados. Meus deuses me chamam e rezamo-nos. Quando me disser, lembre-se que estou em constante postura meditativa. Sou um louva-deus rezando sobre folhas queimadas.
Chartis
Mergulhei em tua mente como havias solicitado em prece antiga. Não sonhava com asas, e brânquias esfareladas eram tudo que restavam de heranças do leito dos oceanos amnióticos. Assim, cruzei-te no intercâmbio fluídico com a confiança que os líquidos entornam nos primeiros tecidos epiteliais. Mórulas, gástrulas e diferenciações histológicas compreendiam-me e me doavam poderes espectrais. O fiz, digo-te, o contornei como um lago plácido em noites de pós-tempestade vulcânica — sorrateiramente. Farelos, cascas intactas de fuligem contorcionista abriam caminhos cada vez mais gêmeos de um antigo mar vermelho aberto em brasa por façanhas bravias de cavaleiros enigmáticos. Como te caminhei. Como te caminhei. Léguas e submersões. Eu aprendi a linguagem de anêmonas solitárias e suas tentaculares projeções efervescentes no pranto mais escuro do útero marinho. Tu não me sabias. Sempre dardejando fiapos de nuvens altas e leves. Que tua missão terrena é sondar pluma e levitação aérea no carrossel das vagas brilhantes que tombam pelas falésias. No galope de unicórnios submarinos seguia um rastro que sabia teu intuito. Onde gotejam pequeninas facetas de corais em formação. Pulsantes, cordatas, fissuras pelas quais o céu tomba e se oculta e se revela crepúsculo, depois aurora, depois eclipse, até que o raio cristalize uma passagem violeta entre galáxias acobreadas. Tão ave, tão alva, tão ave, tão alva. Não me soube assim tão em fuga de águas. Não percebi que uma chuva tão pura poderia ser azul devoluto no seio das terras. Não me soube alada criatura. Meus tentáculos rizomas fibras e fertilidades não poderiam esvoaçar além do inferno aquático assombrado por seres tão desconhecidos. Que me foram surpresas alcoviteiras sedentas de submundos. Segui-as como se segue em vida a curva da tumba que é certeza de sonhos nunca interrompidos. Pela suprema corte dos rios subterrâneos. E pelo desejo de um mundo além de mundos, desviei de tua rota soberana, que me era redenção. Encontrei um mestre abnegado de paraísos flutuantes. Grave como um desfiladeiro desenhado no centro de um campo claro de arrozais. Olhos de chacal. Veias de betume e carvão. Assustador o fascínio desta gravidade que me sugava como se a sede fosse um cordão nos unindo pelo umbigo. Nutrição estonteante. Parasitas de nós, inventamos vórtices de sumidouros. Então me soubeste. No tombo de um olhar ofegante em grimórios de revelação. Hermético. Soube-me com teu conhecimento. Mas não pude voltar. E não poderei jamais. Vejo um afastamento cada vez mais profético entre ti, meu coração e tu, meu espírito. Onde a epístola retumba nos corredores de sangue e febre, formulo um medo qualquer de face horrenda e harpia de astrais vênulas, arremesso o corpo etéreo e me deixo saciar nas águas redemoinhos que nada voam. Assim será, pela jornada zodiacal. Escorpionídeos prateados caminham em salinas provocando ventos boreais. E a água move moinhos cada vez mais próximos das quedas milagrosas que mistificam desertos inóspitos. Tu continuas cintilando, coração mercurial. Eu, astro e invisibilidade, mergulho bíblico no manto das imortalidades bizarras. Tenho oceanos tridentes vestais. Outras mentes portais.
Cinemascopeia para ciclopes
A demiurgia tolera o rudimentar dos seres, já que o criou elementar. Não preciso ser paciente desta sabedoria clínica. Sei que existirão tentativas búdicas apontadas que poderiam enobrecer meu ofício perceptivo, minha conduta arquetípica. Mas se submetesse meu pensamento aos rigores ou ditaduras da cacofonia conselheira, distanciar-me-ia de minha anômala normalidade. E nem o eletrochoque ou o isolamento social realinhariam minha conexão natural, a genética expressa da potência que me foi destinada, como uma voltagem específica. Quem assim o faz, por especulação cênica ou inclusão emotiva, expondo suas conquistas psíquicas como troféus midiáticos ou passaportes para o paradisíaco julgamento final, pois bem, assim o faça, mas que se interne em sua trajetória, integramente, sem tentar moldar a alheia postura auditiva ao seu hino sensorial. Os santos têm unhas aparadas, mas alta sensibilidade táctil. E suas vestes regozijadas desgastam-se pelo abuso manipulador dos fiéis. Suas mãos não tremem jamais. E pesam, como forcas primitivas. Tema aquele que, com a manicure em perfeita simetria, obrigue a curva de sua oração particular para uma órbita perfeitamente simulada e de obrigatoriedade evidente, mas distinta de tua natureza. Talvez, naquela curva doce ao condutor, encontre o extermínio salino e nenhum retorno a si.
Circe
Ditando cancro da labareda e aura do agapanto. Legado de uma bruxaria no marinheiro canto. Vocalizando enfeitiçada ira, tirando da pedra a tumba e a tinta. Pintando no espasmo do papel o ruído do letrado infarto. Funesta, ondulando na teia de um tísico palco. Se falta o mar, encharca-se de noturno lastro. Rastro de boto em navegante lodo, a terrível gaivota da manhã fugindo no seu rosto. Mas ouve, ó, marinha irmã: a barca é náufraga a quem ruge sem rogar ao breu seu necromante manto. Ditando a rocha esquiva, que ao promontório não se farta. É do mapa místico esta falésia, em curva de ilha e encruzilhada. Lançando tranças de chocalhos ao imenso corpo febril das algas. E você que abraça estranhas muralhas, teria do minério o verso atalho, contorcido em verbete sonoro de Purcell, mergulhando nos pios desta nave pétrea, que tonta de peixes e rocas, sutura ao oceano o nome, a juba da flor e o incendiado véu.
Climatério em cortejo de cegonhas cegas
Conto de cicônia cicuta, a moça no circuito dos estrógenos. Veio-me como um fuso de tardígrada, eloquente pelas tramas de um teatro glandular: truculenta potestade em planície de plumas. A percebi perséfone quando beirava os trinta e dois desfiladeiros, novatos e preciosos, como disse o pai. Selando com um abraço de gênesis o anel de rubis, os trinta e dois olhos rosados e sanguinolentos adormeceram no anular.
Por tanto tempo as embalei, aquelas gemas filhas, sem pranto ou prados no endométrio de endro. Quase aos quarenta penhorei o círculo de prata e seus olhares virgens de vírgulas, em vórtices de vômitos. A verba materna me fez cruzar o oceano e a depressão das rugas arrogantes, por arrozais e arrobas.
Flacidez à vista não comporta flamingos e seus rugidos inocentes — asco de micetos, a fauna desta flora na planície das romãs. Musgo e fungo no paladar, adoeci por seis meses, tentando ludibriar Hades e Deméter. Padeci pelo inferno perdido em padrão de pás. Culpei Cicônia, monarca iludida em menarca. Transbordei o limo com os narcóticos ofertados, óvulos em descarte de nirvana puro, rasgando receituários pela ofensa da besta alcoviteira no divã.
Entendi Pavônia na cova da corcova: nem flor doente, nem quiróptera horta. Apenas um ponto de balé protozoário, fosforescente, no cúmulo da nevasca nefelibata. E as falsas pálpebras rubiáceas beberam todo índigo hindu das iluminuras mais azuladas.
Agora a floresta canta alto em quarenta e três sonatas atmosféricas: indígena farsa beletrista. Não escrevo maternidades da loucura por narciso. Quando me for, nada deixarei que não sejam letras de ló, lótus sobre lápide, limbo de líquens em meu testamento anticoncepcional.
Testemunha de Ave Maria Padilha, de Ave Lúcifer, de Eva volátil, de ovário fecundado pela prole de pavões e pítons.
Pressionando têmporas pelo temporal dos sulcos, meu corpo envelhece saudável na menopausa das cadeias montanhosas de Leonella.
Todo útero é éter no colo estéril de Diana em áspide de lua anciã. Sempre nascitura, a fêmea fresca na fístula.
Com teus pés com tuas asas com tua ilusão
Podemos sair pelo dia, pela noite, pelo pranto do entardecer, entre gôndolas de amarelos vegetais, bancos descascados, letreiros de néons, jardim de magnólias, apenas para falar sobre a alma de deus? Me permite esta rua imaginária, solar erguido há séculos, conversa sobre o natural balançando os fios da eletricidade? Posso começar: uma semente alada de dente-de-leão na insalubridade dos noticiários mais amargos, pequena partícula descendo do sol, caindo num lamaçal dourado que chove estrelas, solitário que não se encena, imaterial que não se sorri e nem se beija, encanto tão confundido que me faz te chamar pelas molduras, bibliotecas, calçadas, poeiras esquecidas, entranhas calcificadas no oceano, vidraças quebradas, vinhedos tontos de luar?
Commedia dell’arte
Interpretando a própria cruz, ao abrir os braços. Indelével para a correnteza dos palcos temporários. Os dedos recepcionam o éter e são ramificações elétricas projetadas no teatro dos séculos. Há o crepitar faiscante das reproduções captadas, logo esvaídas pela ardência trágica. Os olhos assistem o desfile sonâmbulo dos obituários poéticos. Tentando achar a vida perdida da vida, na tormenta das têmperas. Um ícone doloroso caricaturado no coração, maquiado pela aberração cromática das imagens. A face fantasma, estrela extinta, persiste na emissão de raios luminosos impregnando a memória escura. Cômico o sofrimento encenado, de punctum repetitivo: a espera deste gêmeo vitruviano, que percorre os milênios com voo estático, aprisionado no retrato dos simbolistas. Como um abraço mímico.
Comunhão
Eis meu rito nômade, ditado pelo santo dos santos que em mim habita. Pelo mórbido dos mórbidos que em mim sentencia. A procissão interior. O alto sacerdócio. Enforcado pelo reino das palavras. Tesla, tesla. Está entre nós. Exorcizo-nos. Somos irmãos de sangue na circulação das imagens. Fantoches de um teatro furta-cor.
Conduta psíquica do livro dos mortos vermelhos
A anunciação sempre me veio com a seguinte mensagem presença: destrua. Dê o pior de si para conseguir fechar o círculo, a pessoa, a conjuração inesperada. O melhor? Reserva. Se sentir o estômago revirando em energias improdutivas, comece a destruir pela base. Teste a confiança. Confesse a imperfeição. Isto evitará a materialização do pacto doentio. Aquilo que conhece seu cerne, persistirá. Anunciar é celebrar a construção. Anunciar é expor a chaga na testa de omulu, nirvânico, bestial e criador de mundos. Se o cheiro de enxofre pairar sobre suas sensações, já sabe o que fazer: seja o enxofre. Luzes doentias são tragadas pela geomancia. Sabe bem. A disposição das gemas conduz a vértebra planetária que te digere, renascendo em mina mágica. Tenha o corpo de um anjo destrutivo, sem sexo e sem parâmetros. Ou destrói, ou será destruída. A imagem é sopro de ventania sobre duna. Shiva tem seis braços? Não. É o movimento, a vertigem da putrefação. O nigredo. Ao persistir, vista a roupa que te cabe: a asa na costela ou nos pés. Sei que preferimos os pés. Sentem melhor a terra. Sem microscópio não há luneta. Três cuspes é o que precisará, os de dentro e os de fora. No quarto serás contemplado. E te direi. E me dirás.
Confesse, bruxa!
Há milhares de parágrafos tento não mentir. Não invocar nenhuma divindade antiga para aplacar as histórias de titânio. Tento lacrar a metáfora em uma redoma infantil: o boneco de neve no mini aquário de lantejoulas. Mas o dragão marinho, que nunca foi um monstro no lago de turfas, patina sobre a água. Tem tentáculos de polvo pacífico. Sua amnésia cantante ensina aos cardumes a arte de evitar as teias e os arpões. Flutuo, navio pai. Julga-me pelas águas. Pois que para meu radar anímico, os confessionários são pequenos gabinetes de teatro. E assim será, até que o julgo dos répteis silencie-se no fundo cênico de meus pecados verbais.
Coração branco
De tanto reciclar-se, reciclar-se, reciclar-se, no suicídio paranoico de despojamentos. Feito bruma rápida sobre os ancoradouros, desfazendo instantes, fotogramas, folhas castanhas partidas e orvalhos anoitecidos. Torna-se liso e pálido, peixe escorregadio, marfim, marfim, marfim embrutecido, refletindo lua que reflete sol que ofusca, estrela que explode, raio que perfura a atmosfera que encobre a lagoa que é bruma, bruma, bruma abraçando sumidouros, onde tudo esvai: o navio vermelho, o pássaro silenciado, a carta rasgada, a chama morta, o osso protetor exposto e nu, navalhando o escuro, cintilando, lua, lua, lua. E nunca deixa de ser a vertigem, a vertigem, a vertigem que invoca e exorciza, em cada apocalipse interno lançado para nuvens maquiadoras de estradas, fervilhantes de peles, escamas dançarinas soluçando a morte, assombrando a vida. Neblina. É neblina sobre o campo de papoulas, sobre a pálpebra e adormece enquanto sopra a canção dos gumes afiando o olhar sonolento para sonhar e sonhar e sonhar até desfazer-se em cinzas de pérola mansa e subir extinguindo-se em névoa, sem tréguas, sem rédeas, sem léguas, imenso assim de vento crepuscular.
Coração da noite estrelada
E ouço o amor em passos de ouro líquido, nas tempestades fantasmagóricas da claridade. Quando escapam centauros dos pés do mundo. E dizem: galopes desequilibrados. Afastem-se para não morrer entre os ossos escuros do sol. Eu digo: órbita. Deixo-me ir. A luminosidade no retorno a terra. E anoiteço. Margarida magnética, pisoteada no campo de girassóis.
Corpus alienum
Tempos gelados, diz o homem que sonha na pele de uma rena. Onde costuro a percepção das planícies brancas. E a executora, senhora das seringas, oferta seu sorriso irônico. Doando o calor ancião, com versos de caçadora. Em teu coração, moira universal, as geleiras abriram-se em frestas de nichos aquecidos. Reduzindo o crânio arrogante para o calibre de tuas agulhas. E, hoje, as bonecas de milho, com olhos de cereais, são recordações de mamutes gigantescos. Estamos salvos em nossas cavernas de ossos, hipodérmicos. Graças a ti.
Corvo da papisa
Corvo da papisa, volte para nossa casa quente. Dentro de seus olhos frios há uma semente que não nos esquece a morada na borda afiada dos dentes de leão. Força, escuridão de pequena criatura. Que sua mandíbula de quimera vocalize em vento barulhento o endereço do solo fértil sob nossos silos e selos, sempre abarrotados de ninhos e versículos. Húmus e hastes do esqueleto da noite são nossos caminhos fáceis de decorar. Corvo da papisa, retorne em guizo e gôndola, rastreando a terra e o mar com suas asas de braseiro. Enquanto a cortina da madrugada desce sobre as ossadas, recito nosso nome de treva e trevo até amanhecer teu corpo rezado em missa de trigo e rubi.
Creonte creolina
Vem, Creonte. Vou te cremar. Tenho um poema insepulto. Triste só pelo tempo de prantear a lembrança das garras arranhando móveis e almas. Agora tenho um gato negro do outro lado, me guardando (e aguardando). Poesia pagã. Um portal com uma bela esfinge negra — pantera das torres prateadas, lambendo as patas e dizendo: o cosmos tem um gosto saboroso, de peixe no oceano maior, o esplendoroso. Guarda-me, que te guardo. E a eternidade? Mia. Minha carga d’água é um leão fardado marinho. Um fardo felino. Guepardo na sobra insalubre de um aquífero que já foi deserto de rochas vivas.
Crônica
Só quero ficar aqui, dentro da barriga de buda. um estômago icônico digerindo imagens. escrever no bloco de notas sem corretores ortográficos nem funerários. Sonhei que era um peixe no ventre do oceano, e o mar me dizia: agora você é Crimeia, pois está profundo e mastigado como um território santo devastado. Eu preciso descansar, pendurar os espelhos nas paredes, com suas mil e duzentas faces mirradas. Sem agradar ninguém. Apenas os gatos da casa ronronando e os passos de Mephisto engatilhados no corredor. Preciso escrever, decente, apenas para minha digestão. Tempo, eu te invoco para mim, nutriente e ritualístico. Há tempos que não conversamos: só. você e eu.
Crepúscula
Há quantos séculos nos toleramos, noite fosforescente? Bichos noturnos ao relento, rezando para que o dia não nos seja quente em demasia, que não nos desidrate de imagens enluaradas, impossíveis, inusitadas. Há quantos séculos nos alimentamos uma da outra, em ritual descrito e erroneamente traduzido, placenta originária, coluna proteica replicante? Diga-me, pio de coruja, cão de diana, cervo de inverno, nostalgia de primavera, diga-me que não estamos a sós.
Crônicas de lástima
Se eu entristecer, será mais um terremoto de 1755, com 40 mil rostos plásticos soprando as caravelas fossilizadas em fundo de rio lilás. Com apenas um pé dentro desta água, já me encantaria a beleza soturna do nobre senhor com vestes de bile negra, que sonha o passeio dentro destes insistentes corpos divorciados das nuvens. Pois ele tem passos de obsidiana com pintas brancas, como o leopardo tatuado pelos olhos de um gato. Não ouso pronunciar seu nome pelas minas que corteja. Então acendo um cigarro e invoco Albedo, o mentor mentolado do branco pelos azulejos. E persisto na maníaca sensação das teclas dançando secas enquanto o papel veneno se autoconsome. Como todo fumante arrependido que se perde: gastando as duas moedas preciosas para que o ar atravesse o lago do esquecimento com todas as tragadas que não ousamos inspirar. Pulmão limpo, voltamos ao imaculado, enquanto as paredes fotográficas amarelam. E a porcelana desponta pela úlcera das bonecas. A chuva retorna pelo vidro daquelas órbitas, alagando os arrozais. Entra na sala como cidade imperial (toda vermelha), a massa de 25 soldados engomados esticando bandeiras esmeraldas sobre as poças do chão alagado. As garotas da colheita oriental, desta forma, atravessam de uma margem a outra sem o pânico dos afogados. Quando a brasa quase desperta o dedo, chegando mesmo a iluminar a gema negra que o intimida, acordo para a inusitada ponte. Os militares de chumbo sempre sustentam o concerto flamingo das bailarinas. Se eu sorrir, o maremoto limpará todas as escadarias, como o ritual feito desde 1754. Mas assim abandonarei o vício da onda que ousa expirar o céu, rasgando o vulto sufi do mar. E já será 2036.
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