Dama de todos os naipes
Sangrar todos os meses, desesperadamente. Um tipo de poder que cresce e que se esvai. Sem fim. Não há desperdício. A natureza é sábia: intui e se protege. E pode interromper a circulação quando melhor convir. Não descartem ou ironizem esta etapa cognitiva. Criem teorias, assediem filosofias. Pensem e julguem. Quem tem, sabe. É como ter filhos, ou livros e fantasmas. Plâncton e espectro. Mas não estou falando disto. Estou falando da intuição rainha. A dama de todos os naipes. O climatério é certo. Dizem que a bomba H também. Sou darwinista. Intuo e me protejo. Fez, tem retorno. O sangue circula e se renova.
Dama-alcatraz
Suas joias me afetam profundamente. Provocam-me distúrbios plasmados, pois são carismas lapidados de ressentimentos seculares: a morte circunvoluta dos moluscos, a incisão horrenda na pélvis da fluorita. Não posso amá-la senão com a carótida pulsante de um animal agonizante. Os cordões umbilicais que me atam a seus brilhos esticam-se e urdem com interjeições proferidas por larvas fabulosas. Ela, a gangrena gramática. Mesmo atada às suas cartilagens enrijecidas, aos seus versículos percevejos e ao seu lamento de ourives, deixo-me necrosar em sua meditação preciosa. Visto seu hábito incrustado, mais uma vez. Como uma insígnia tumular branca, mimetizada na fantasmagoria do marmóreo nevoeiro.
Dama-ciência
Certas misérias humanas não passam de perdigotos de dragão. Entre o marrom e o âmbar. Com minha saliva de química vermelha, injeto clorofila no azul das pequenas aflições. Em meu exercício de sacrifício colorido, os corpos são ensaios em tubos de chroma key. Explosivos.
Dama-oriax
— na mão direita segura duas serpentes sibilantes —
Contempla “a bela”, transformada em “a dolorosa”. Mapa de pele morta no monitor arcaico de um antigo anatomista. Ela, dura-máter, vaticana de si, com a altivez da trindade tolamente substituída pela evangelização cognitiva de suas carnes apáticas. Descamada em sortilégio de inanição. Nunca entendeu a causa de sua osteoporose cósmica, pois evitava a visão da eterna catadora de ossos pelas encruzilhadas mentais. Se fitasse além de suas neuroses fossilizadas, recuperaria os sais e os precisos caninos para a siderurgia corpórea, fundamentais para nutrição e desova de sonhos. Não ocultaria o guizo, delator de suas víboras neuronais (acesas de mitologia arcana). A noite das cruzes não estalaria seus espantalhos, sufocados no espartilho de lata. Ao sair, tu que a vê, com a lente multifacetada dos insetos livres, zepelins sobre carcaças: avise-a que não senti nem mesmo um estremecimento psíquico, quando a deixei partir. E dize à outra, “a que ora”, leprosa metalla, que a louvo na ceia pétrea. Na rótula ferruginosa, duplicata carcomida na mão da entidade que alimenta.
Dandelion
.verto o enxofre deste mistério.
.como um eco, como um eco, como um eco.
.de felino esférico na latência de um deus.
Demônio muito antigo
Demônio muito antigo, sou o que rezam. Seduzido pelo latim, sem precisar entender o significado de qualquer artefato vocálico ou consonantal. O som me suga e me acaricia, entrando na caixa craniana como se pérola molhada no ventre maleável das pétreas espirais. Apesar do desconforto mecânico pelo canal auditivo, são suaves as concordâncias — segredos e prantos dos fossos marinhos, profundos e ricos em luminescências ofuscantes — dessa língua de exorcistas assustados com mensagens de idiomas que nunca traduzirão, humanos que são. Pelos seus verbetes sacros encontro as catedrais, as góticas, as barrocas, as tísicas e as de pedra bruta, amplificadas pelos contorcionismos do coração de ferro derretido da terra. Gloria in excelsis Deo, por ti nasci, ricocheteando no chicote luminoso dos raios em espetáculo elétrico, um jogo de poder na sombra celeste encenada pelos vitrais. Quando cantam os relógios, confusos pelas teias dos meridianos, os ponteiros tinem como sinos dentro de meu sono secular. E acordo para o expediente que alimenta o suor dos rostos. Desço sobre as faces, orvalho e fermento brilhante. Ouço a queda dos líquidos — labor, saudade, dor e celebração. Formam-me os humores que vertem da dicção e da escrita. Sou uma tábua léxica de segredos no abecedário de elementos. Deixei-me escrito, codificado. Erudito e atencioso, enfeito a flor do Lácio na ceia pagã dos religiosos. Decora-me e te devoro. Recita-me e seremos um poema em prosa sem a genuflexão artificial dos sonetos obedientes e milimétricos. Amém.
Destinatários
Janela com cortinas entreabertas. Apoio do cálice e moldura dos vinhedos. Tudo que gira na vitrola. Taça de vinho tinto, sem gota venenosa. Pérola e álcool evaporam antes de escoar para os sonhos. Os vales suspensos em estacas castanhas como xale de inverno, bordado com desenhos complementares de coleópteros paralisados. Ilusão de movimento quando o vento desliza sobre a trama esticada ao sol e os besouros parecem voar em carreira. Olho fechado. Não fossem as asas quitinosas com sua sensação de carvão úmido, o outro também se fecharia. Os lábios digerem a palavra branca e os pés estão brancos. O branco do corpo e o negro da falsa estrada solta no ar. O caminho chuvisca árvores rápidas, seiva âmbar de rio coagulado em leito quase morto. Mais perto, mais perto: o filete na casca repleto de formigas vermelhas. Pequenos cacos violetas pela respiração entrecortada do céu. Eloquência. Ainda há água. Quadro, cena, recanto mental. Para fugir sepulcro, para cantar escuro, para adubar o interior do sangue com qualquer coisa que não tenha gosto de sal e açúcar diluídos. Mineral plasma bruto sem que o estanquem sem que o julguem sem que o entendam. Amor não escrito. Cascos de fogo silenciosos cauterizando desfiladeiros. Corvo tão azul em redoma frágil, de vidro. O azul é dor e ninguém percebe. O azul não existe. Silêncio. Não há pássaro. Há o plâncton de luz mais táctil onde as pupilas viajam a noite de constelação terrena. Estilhaçar. Hora de acordar o selo. A carta voa. As frases se rasgam.
Dezessete horas para a caravana dos espíritos afinados
A árvore de falso boldo caiu adocicada no jardim do intervalo. O jardineiro também era falso, terceirizado, com salário atrasado, contando-me que na verdade era porteiro.
Não tive coragem de usar as folhas podadas, já que perdi o hábito de carregar lupas nos bolsos do jaleco, agora entupidos por cápsulas ilusionistas.
Um sol capitalista, atropina vespertina, deu-me a visão de uma moça com cabelos cor de céu, a rainha dos micróbios ianomâmis. Ela disse ao boldo que me foi — Levanta-te, pega teu leito e anda!
Holística é a ceia das bestas nesta polifonia de tesouras. Para um anatomista, não há som que ultrapasse a compreensão, bela e maioral, da possibilidade de actina dançante pelas chaminés hidrotermais. Não há consolação fisiológica que não seja esta, para um adepto da colisão.
Tectônica, eucariota ponte, eis-me orionte em tuas crateras cognitivas! Estes teus olhos dilatados pela burocracia a que sucumbem os futuros cegos e o destino dos monges. São míopes também as moças atrás do balcão dos sanatórios. Ousam o pão pelas salas contaminadas, sem lembrar as lokiarqueias pelo fundo mais profundo das fossas marianas e outras, ônticas e abissais. Seus carimbos são minha música legionária a 3.283 metros de profundidade.
A dama eólica da anticoncepção, hemerocallis fulva, como trombócito no picadeiro da aorta, talvez sinta cócegas ou cólicas. Apenas um córrego contido pela cesárea cósmica. Fórceps? Provavelmente.
É sempre doce a minha hora do chá.
Diabo azul
O diabo azul sorri de soslaio, arruda ou sálvia no musgo — lábio sóbrio de espelhos. Olha, o diabo azul, para todos os livros azuis, aquele tegumento de urânias capturadas pelas manias múltiplas do cata-vento, quando teima esferas no céu elétrico das violetas tentadas ao adormecer. Nada de flores no sorriso, mas um barco muito antigo sonhando a crescente flutuante sobre um abismo de lágrimas agitadas. A flor é sempre uma água contorcionista, nem sei se podes ver. Mesmo assim, a mulher-lagartixa grita agonias sombreadas no órgão rígido das catedrais — aquíferos de cuspe bifurcando orações de salitre. Quantas horas eram? As mesmas horas ruminantes no corpo de espinho-cristo e o sino minúsculo imitando escapulários na parede que sempre encontra os pés. Os dedos alados em passo de morcego diurno, por falta do sangue aveludado das tapeçarias. Vê a orgia? Comecei com um diabo azul-celeste, o lábio-portal sugando o enredo de qualquer floresta que ouses imaginar. Arabesco e plataforma de vidro vulcânico, para que te possas deslizar o ventre lagarteado. Onde encontras o céu dos beatos, quando os pés esquecem as nadadeiras do teu gene colisor? Merapi, erebus, gás louvado a 3800 metros do sombrio mar. É vermelha a boca da moça que é mil mulheres. Sei que já a tomou nos braços quando a folha te pousou no punho, enquanto mergulhavas no frescor dos mármores e das esfinges — como relógio canibalista, sobrevivente de erupção. Depois, atração temporal no circo de horrores sísmicos. Tentavas reconciliar a deusa do oceano com o demônio do vulcão? Erta Ale, erta ale, magma exposto no teu osso, feito bruma vadia de jugular. Agrotóxicos e andróginos oscilam. Se hienas não mastigarem estes seus suspensórios porosos, virará pó aluvial. Lembrarás uma raposa voadora? Meu palco é de pedra-pomes. As garras? Pontas de obsidianas para pantáculos de hominídeos. Como o vagar sem echarpe por necrópoles: não aconselho. Onde foi mesmo que perdi o enredo do diabo azul? Creio que não foi minha perdição, mas tenho certeza de que ele se perdeu nas próprias imagens que me enviou. Eu ainda consigo me deter em cada verso vertebral e contemplar a sua espinha bífida na redação de meu espectro de brocken.
Doméstica ao dromedário
Nem camélia, nem camela. Suas rendas escuras, as melhores tecnologias digitais. Táteis como cinzas de cigarro abandonado, funerárias de mar nenhum. Língua eletrônica de efeito viral. Cuidadosa ao mastigar, quando sozinha pelas salas & alas. Para não afogar agonias no anonimato das sílabas esfomeadas. Sem plateia, o palco é palato primaveril. Opulência, opulência. Com dardos de opala digere e cospe afetações luminosas pelos tapetes e tablados toscos. Tanina de thanatos, digita enquanto bebe. Gramas e mais gramas de redutor de tempo derretendo o bigode chinês. E uma inseparável gola rolê no chacra laríngeo, a tarja preta no perdigoto. Se deixar que as quimeras saiam livres da voz, será que retornam? Na dúvida… adestre antes de cantar ao deserto.
Drama druida
Solstício de inverno, meu drama druida depois da noite de Walpurgis. Fácil performá-lo nas florestas geladas do sul, com suas pradarias de pedras naturalmente ritualísticas. Não é raro encontrar pequenas flechas abandonadas no campo verde de batalhas, as penas da gralha-azul. O solo esburacado pelas minas terrestres das urucuriá impele o cuidado do pé pelas gramíneas: pise como se na catedral de ossos sagrados. Avós. Uns olhos de céu germânico e pintas de ferrugem na pele de leite, nascidos do outro lado do mundo. E a cabocla com olhos de stregaria e saias de cigana, sempre cuidando do fogo. No encosto dos campos, os pinheiros têm a estatura do cornífero, o gamo dos celtas no sopro dos carvalhos. Encosto-me anciã em conversa com as ancestrais. Reinam comigo quando represento Yule, um pouco abaixo do trópico de capricórnio. Até que se entorne na brancura da face o zênite urucum do sol.
Drops de Durga
Jung chicoteia a paciente. E dela, em cristais subterrâneos, flutuam ao ar os conceitos de uma tolerante idolatria aos símbolos. A nuvem ornamentada, a linguagem ritualística. Portanto, não tema o “agente dificultador da objetividade discursiva”. São cápsulas, comprimidos, desenhos sugestivos em bulas. Tratam do incêndio aturado pelos decibéis inaudíveis no forno antigo dos alquimistas. Ardem como receitas médicas psicografadas. Indecifráveis, até que se umedeçam e amoleçam na saliva. Engula. Agirão no estômago. Os ácidos internos saberão o que fazer com esta língua que te cospe.
Duas brumas e um rosto
Técnica de Gram. Cor secundária. Vaidade ou sobrevivência? Morgue de foxglove na omoplata. Dez negras espadas na calçada, ladrilharam o cortejo. Foi assim: a abóboda do crânio afundada como um cristal tentando a forma na veia do vulcanismo. A fontanela abrindo-se em copas de tesselações. Ouro do mundo, onde está? Por que me assombra com esta carta em flor? Luva de raposa, dedais do morto. Não há mistério nem iconografia. É apenas a floração esconderijo preferida pelas abelhas valquírias, digitando vórtices no papel pardo com a tinta púrpura de uma antiga escritura. É o mesmo pasto de campânulas de sempre, no pacto da letra e das paredes com que me resguardo. Agora nos fios, que me lembram o tear das moiras violetas e dizem: seja cromática, como são os grimórios e as presenças que nada esperam da compreensão alheia que não seja a companhia pela efemeridade da existência. A mala está preparada, mais uma vez. Roxa.
…lágrimas de tanino abraçam a noite…
O sol imenso aparece fraco pela tessitura paranoica das nuvens em um dia seco. O não discurso das rendas é tatuagem de sigilos na pele de lúcifer, estrela da manhã. Esta música de luz não quer dizer nada, mas não me diga que não posso ver o sincretismo do relâmpago nesta alegoria. Se vejo a costura, uma agulha resplandece pela rede neuronal. E não há vocábulo mais metálico que o bastão das costureiras na teia dos dias. Fibra de nimbus, trovoada. E eis o risco azulado no centro do tédio cromático. É claro e certo que todo astro é um tatuador obsessivo.
Duplicata ardorosa
O ano do Rato. E sonho com símios. Jardins selvagens, fôlego de Bosch pelas raízes. Chega até aqui, onde o tropical só alcança o chão por um milagre de giro. Balé intuído. Pavões, talvez sílaba proferida por vitral. Mesopotâmia? Será? Pavões na sombra dos zigurates. No jardim suspenso, a pluma na mão do jovem, descrevendo antúrios invisíveis no ar. Ele conversa com seu duplo pelo rabisco quântico: navega uma viela veneziana. Nas águas das minúsculas flores da folha cardíaca vê barcaças. Não se intimida. Arde em libações vermelhas. Não o vermelho vulgarizado da paixão muscular, mas o vermelho da lágrima dos deuses babilônicos. O vermelho dos vasos comunicantes e das ânforas do menino-cabra. O vermelho sagrado. Seu corpo é um ritual. Seu duplo é uma esfera dourada na ossatura delicada do leo-pardo selvagem. Sobressai na noite como as lamparinas flutuantes dos navios cortando o fio laminar do oceano. E as nebulosas distantes? E o nome escavado na cordilheira? Aqui, no ano do Rato, onde a manhã é fria como coágulo cristalino na trama dos arvoredos, com símios amedrontando barcaças de musgo. Os olhos do jovem são brotos de ágatas atrás dos antúrios. Migração. Cordas grossas no ancoradouro: passarela de roedores. Terra à vista: palmeiras esparsas. Esta visão de calor. Sufocante. E os imensos blocos de gelo na curvatura do horizonte? Para onde evoluem estes passos vacilantes de tua mão? Não sei desta atmosfera sempre aconchegante e calorosa. Nasci no frio e meu duplo aprendeu muito cedo o resguardo de provisões. Potestades. A densidade das nebulosas. As cordilheiras e os pavões. Encanto perdido. Converso com o duplo que vive no deserto. O que mais poderia ser além da pedra com o ventre exposto na fúria na água? Rótula da curva solar. Por vezes é cansativo ler o que é escrito agora, ou então algum surto de lucidez me revela palavras que eu tinha, tão raras e antigas, profanadas pelos silicatos. Tornadas vermelhas, aquele primeiro vermelho; fugaz, versátil, caloroso. Nesta hora entendo o símio do sonho, e meu duplo mergulha brácteas na infusão das dunas. Ele se entristece, seu corpo de ritual quase desaparece pela nebulosa do pavão. Palavras que nada rezam. Um pouco mais púrpura, mais parda. Ferrugem ancestral. Se fosse assim o vermelho que quis sangrar e que não compreendem. Vermelho sagrado, diz o duplo levitando na esfinge e do zigurate de opalinas. Jardins de areia suspensos. Torres de água nua. Aqui, no ano do Rato, é intolerável esta parafernália tropical. O duplo é vermelho. Do carnaval, a gestação das cinzas bentas aduba seu sangue-linfa. Madre-silva.
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