Echarpe na chuva cinza
Abraço do mundo. Molusco, escorrego. Cai-me a casca enguia da morada. Lantejoula puída da epiderme. Oito tentáculos liberto, estapeando a mordaça. Mirrada miragem. Esfinge liquefeita, hálito de ventarola. A jugular liberta no canto morgue dos unguentos. Nem óbito, nem ovo. Verbos gastos, bolsos mortos. O cordão sem tesoura. A alma besoura afunda mística, vestida dourada. Sem piedade. Frio do fundo, orai sem nós.
Em rebelião de lascas
Pinto as unhas com a cor das chagas — um toque de dourado, leve — e renovo-me, rindo suave, rindo serafínica. A parafina de minha contestação esgota-se como lava de fina esfera desembocando no mar do norte sombrio. Sinto-me em rebelião de lascas, com a camada intacta brilhando holofotes vertiginosos sob as letras tolas dos mentores abdominais. Pós-digestão, pós-libélula. Há mais cor no cetro de um escaravelho que nesta simplista composição laureada pelas inocentes esperanças dos escritores de babas angelicais. Besouro vermelho, ferida provocada pelo cancro de deus. Bandeira de cruzada, enlameada por tiroteios de lamentos e rezas que nunca saberão de que matéria escarlate se encharca o verdadeiro céu. O meu.
Escorpião e eclipse
Impacto deserto é a estrela do dia na retícula eloquente da pestilência interior. Se ela sobe, a peste das flores febres, ativada por víscera rancorosa, a mulher-ferrão indaga ao lago dos humores:
A que brilho de fórceps a lua seta apontaria, com seus cornos de anjo que nunca me cairá?
E para si mesma responde, manancial de águas pluviais:
Lagoas paradas, braços de raízes, farpas de erudição. Se te perseguirem a sombra até os confins do mundo, seja verdadeira. Crescente de contorno azulado. Lágrima seca fosfórica. Face dourada de tempo ilusório.
A velha de dentro é imortal, enquanto o universo agoniza ao respirar. Corcova ao peso de séculos.
Nada me corteja que não seja a luz listrada sob a areia ereta que aceita sua força movediça.
Espírito da Floresta
Pessoas retornam ao estágio selvagem, mas com irritante e civilizada inaptidão adquirida. Enrolada no ovo, estico os nervos ao sol, junto aos gatos. Observo pela casca raiada e translúcida. Vejo através dos poros da camada anestésica e protetora. Mãos geladas, coração acalorado. Ao invés de usar a força orgânica da voz, a multidão abaixo balbucia súplicas e comandos inúteis pelos megafones. Não entendem que as palavras têm poder rebelde e que são feitas delas, naturalmente. Quase meio dos dias. Horas de voltar a dormir para ouvir outras vozes amortecidas. Se disserem meu nome, talvez responda. Se me lembrar desse nome. Masmorra ou dinamite? Curvar-se em reverência ao sangue progressista da humanidade cívica seria pacificador. E afirmo que somente me curvo, em prece e asa abdicada, ao espírito da floresta. Não me tentam os desfiles patriotas, tão irmãos de minha autoafirmação cósmica. Há uma dor presente nesta fictícia constatação. Mas o tapete no qual escolho deslizar a mente e o coração está bordado com arabescos de bichos & bestas & bíblias escritas por poetas. O sete do sete é belo pela sugestão cabalística. Vou-me ao chão de sol desta data, apenas pela simbologia. Independência imagética ou morte.
Estereoscopistas
Os amores que nos construímos no flanar das latitudes é a simulação das corredeiras. Não é visto com a visão comum. Não é compreendido pelos olhos que não cavalgam os ventos do espelho. São teoremas de acaso atravessando a noite dos desconhecidos, enquanto esquinas de frases prateadas doam sonhos para o coração do labirinto. O estar que começou a existir quando nos encontramos confere tonalidades estranhas para as palavras recitadas no templo de Kali Durga. Lembram o som de passos submarinos, léguas percorridas em canais subterrâneos, gelo seco em pistas de dança. Cada presença que se situa em nosso âmbito perceptivo, uma anêmona, um anagrama, um corpo aquecido, um cálice, uma vertente, nos comunica. Estamos distantes. Não permanecemos no mesmo aposento, na mesma viela, na mesma placenta. Embora tenhamos conquistado o mesmo cântaro a ser preenchido, não bebemos da mesma saliva. O tempo e o espaço. O escoar do êxtase pelo martírio das avenidas. Para onde poderíamos caminhar, senão pelo bizarro das poesias sem destinatários? Respiramos emprestando títulos, rotulando cataclismos, ofertando sangrias imaginárias. Escrevendo no pigmento branco na face de um deus hindu dançarino. Escrevendo para esta dimensão que arrasta a letra do papel para a atmosfera em revoadas de valsas mascaradas. Escrevendo no vocábulo que esfarela o não.
E negando, por paralaxe, por catarse, para não agonizar pelas portas ruidosas que se abrem nas linhas da mão.
Comments