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Foto do escritorGavita

Neônia - Letra F, Letra G

Fada sonolenta


Sempre uns olhos de fada sonolenta, lenta treva, em máscara aborígene, filtrando o mundo que nos alimenta com visões. Horrores em pergaminhos. Desastres em pérgolas. Tribos soterradas. Terra, cinza, pasto pobre de poder, treva lenta. Poderiam beber a pérola do luar paralisando suas begônias bizantinas, os olhos fadados. Poderiam relembrar bisontes ainda vivos nas savanas dos primeiros passos noturnos, tão terríveis, magníficos e incompreensíveis quanto o sedoso pano de fundo para um campo de estrelas paleolíticas. Mas recusam-se à estadia visionária ofertada, trocando-a por modelos hospitaleiros de óptica opiácea, tão instantânea e ansiosa sua esfera. Os olhos de fada anestesiada, dadivoso breu, rústica retina, não desistem de projetar-se em mortífera matéria por nossos cílios maquiados. E a película empoeirada de sua prateada sensação nos arrasta para a teia dos desentendimentos imagéticos, para o lugar onde o terror da sobrevivência é apenas uma miragem inofensiva, uma cênica hostilidade para narcótica nebulosa. Lentamente repetem, enquanto piscam, treva a treva. E não a veem.


 

Falanges do livro dos mortos vermelhos


Eu sou uma garota que não cresceu. Desisti da engenharia genética quando percebi que seria imoral criar um Frankenstein, abandonando meu diploma de biologia no meio das ossaturas do museu, onde estagiava como taxidermista. Mexer com ossos provocou uma cisão em minha mente. Lembro do dia, quando colei ossos de sapo em um gato-do-mato e percebi que ser criador de aberrações me fazia desafiar o conceito de um deus harmônico e aceito pelas criaturas de bem. Percebem? Eu desisti de meus sonhos pensando que não seria aceito pelas pessoas e adotei a alimentação vegetariana. Anos depois vi uma exposição surrealista onde as montagens de esqueletos de espécies diferentes causaram um furor contemporâneo na plateia. Poderia ter persistido e hoje seria vista como um artista excêntrico e inofensivo. Então me vejo, hoje, cercada de caixas de fármacos, cápsulas de perigosas concentrações, onde o vício é tolerado pela amnésia da dor. Assim, escrevo e conto muito de minhas alegrias, o que me faz parecer arrogante, pois o discurso aberto e desenfreado fere a noção de silêncio nivelador. Pensando bem, não deixei nunca o hábito escarlate de misturar anatomias pela gramática e nunca obterei a aprovação integral coletiva. Mas me dizer poeta é menos perigoso, pois o poeta é visto como um ser inocente e sonhador. Há o descrédito, pois o simples fato de não conseguir seguir o relógio que rege a conduta dita saudável e correta, já me empacota no bolo das personas esquizoides e indignas de tolerância morna. Mesmo com todas as frustrações digeridas e talvez por isto, tenho o costume eloquente de montar arquiteturas desajeitadas pelos vocábulos. Minha respiração está sempre cheia de palavras, da expiração à inspiração. Talvez eu não respire como um adulto e o fato de não ter crescido me faz admitir que meus pulmões efetuam trocas gasosas cujo produto final seja apenas o deslocamento de infinitas expiações. Não consigo treinar o diafragma corretamente. Creio que meu coração também tenha paralisado em algum segundo traumático de anos passados, porque por mais que me alimente, sinto a fome de um leão imagético desnutrido. Onde está a iluminura que enfim me nutrirá para que me complete criatura sadia, simplesmente arrancada da costela de algo mais palatável que uma cria de geração espontânea?


 

Fausta ferida


Espírito expulso das tribos, alma errando pelos trigos. Tigre projétil gingando exu. É meu órfão e é azul esquivo. Anil de interiores, despido. De becos inferiores, rendido. Sem teto, sem túmulo. Da alquimia, homúnculo. Da ventania, matuto. Da carne eterna, sepulcro. A pele hematoma, a verve de uma bomba atômica, quando ora o pão e recebe a hóstia. Bebe malte na garganta do diabo, neblinando lúpulus na levedura das nuvens. Forja a glória no fermento das deusas chuvosas, cintilando código de cidra nas ordens místicas pela orelha dos cogumelos. Fotodramatiza a missionária com mão selvagem no drink celeste dos matagais. Está no medo que incita a presa da naja, no esporo da bactéria, no tentáculo da caravela-do-mar, na toxina da mariposa, no temor na expedição em labirinto, no fluxo da areia movediça, no sono do feto alado, no balé do inseto capturado, no expiro das gemas e das geminídeas, na filiação do sol na máscara, na fagulha ritualística nos tinteiros, nos discursos invisíveis, nos aliens, nos aborígenes, nas palavras rezadas em saltos ornamentais.

Ainda te espero, gota densa, desenhada, pronunciada.

Rascunho de deus em lábios flamejantes.


 

Fera-adormecida


Wotan efervesce na cátedra do dia novo, enquanto teus pés afundam no violeta de divã. Doma-te um complexo, depois outro. Até onde sucumbirás, nesta efêmera colmeia articulada? Não há catequismos que te libertem as mímicas inflorescentes sob as patas do carvão. Encontra Koré. Catamórfica, esta autônoma vive oculta em ti, como prótese quiróptera incandescida. Projeta-lhe o escuro plástico com que embalas tuas novenas despejadas. E verás protuberâncias notívagas descamando a epiderme, clara e gasta, com que te disfarças para não ferir a luminosidade ensaiada. Emergirás de tua liturgia branca, envolta por fina membrana de terras raras. Íntegra como a primeira mulher fossilizada em ícone sacrílego. Desperta. Nem que o peso de dois mil anos de cristandades te force a coluna alada ao sincretismo tetrapoda. Lembra-te da fruta-dragão, polinizada por morcegos e mariposas. Que a necropsia da lua fareje a demência precoce das violentas manhãs. E as floresça.


 

Flor do lácio


Cinco da manhã. Tabaco e copo-de-leite, gerânio sonâmbulo, gravuras de chat noir. Breve o mundo saciará a fome que a noite disfarça no músculo inerte. Mas ainda não dormi, demiurgo. Nunca durmo antes de criar o dia. Mastigo uma maçã para que não se deteriore a fruteira, já que não existem cafés matinais por aqui. Sobre mim, indigesta, dirão. A fruta inocentada. Não percebem a estratégia serpente?


 

Fluência


Tenho visões com miríades de seres que pulsam do imaginário. Vegetais, minerais e animais caminham pelo sangue. Entram pela retina e saem pelas mãos: letras e imagens. Depois que sangram não se sabe onde está o mineral, o vegetal e o animal. Carregam no ventre a sagrada comunhão das ossaturas fantásticas, com plasma de linfa e sílica e olhos andróginos. São plurais e moldam minha fisiologia diária. Um dia me furtam a placidez e minha face lembra o tropel de um unicórnio, no outro me encharcam as vísceras de água ardente e me brotam miniaturas de massas atmosféricas atrás dos pés. E assim adiante. Todas as metamorfoses me fazem correr, embora o movimento se revista da lentidão de uma galáxia fetal. Executo sangrias diárias para não os incubar no miocárdio. Para poderem voar com suas plumas de alga sobre as cordilheiras de ervas prateadas e sob as barbatanas do lince. Depois que voam, voltam transfigurados de outras letras e de outras imaginações. E de novo não se sabe a natureza de suas intenções: pedregulho, papoula ou pio de coruja. Só sei que se inscrevem nas horas pardas que conjuro. Por isto os vocalizo com a motriz dos líquenes, rabiscando arabescos nos seus portais.


 

Foxglove-mãe


Será preciso o trote violento para sair do berçário das campânulas.

Li muitos livros no decorrer da vida e chafurdo a memória para acionar todas as posturas descritas e embaladas pela retina.

Mapas, malabarismos e pirofagias, lançamentos de dardos ou feitiços, estão todos guardados no início do ponto entre os dois olhos, lidos e prontos para sua centenária vocalização.

Aprendi que se pode cruzar a cripta cerebral e todos os seus declives e ramificações pantanosas, partindo do hipocampo.

Serão cavalos marinhos os seres mais apropriados para a mimese nessa passagem? Centauros, corcéis alados, mangalargas ou potros selvagens com coração de café?

Não quero pisotear as dedaleiras e também não quero atravessar o pergaminho da percepção sem tocar em suas cápsulas florais, para que se abram em uma conversa motivadora.

Que o trote seja uma mímica de centopeias em anfiteatro construído suavemente nos enredos dos relevos naturais.

Armo os dedos imitando a corrida das lagartas nas gavinhas de passifloras. O teclado preto e branco é um piano de vidro vulcânico.

Sopro as unhas dos futuros bichos-da-seda e os animo:

— Vão, deslizem pelas teclas como se trotassem por nuvens escuras e fertilizantes.

Eles me olham desconfiados, mas sinto que acendi uma chama alimentada pelos seus pontos líquidos vitais.

Escuto o granizo de suas interlocuções e pressinto a chuva aninhando as raízes da foxglove-mãe, por dentro da terra cardíaca.


 

Fractais para anaïs


Foi pela queda de meu duplo, pessoa profecia, que invoquei Pavônia, de olhos violetas e língua carmesim, pessoa receptáculo. Dotei-a de bizarros poderes geométricos, todos os poderes que meu corpo físico não poderia sustentar por muito tempo fora do reino interno, tendo se tornado minúsculo como o corpúsculo andrógino de um floco de neve de koch. Com os tecidos rendados de astartes e anáguas de aves marias dos navegantes, vesti-a. Mas enlouqueceu. Agitada pela cosmogonia heroica das embarcações no mar violento e fecundo, guardião das sete paisagens ilhadas que ocultavam meu tesouro esquartejado. E tive de fazê-la adormecer tal qual o gênio da lâmpada, hipnotizando-a com delicadas flores amarelas que se espelham na placenta fria dos rios. Narcisos. Quando o duplo surgiu no dorso dos céus, com sua face dourada quase palpável, não pude acordá-la. Sua loucura beirava a santidade das nuvens carregadas, mas me afogava com suas estradas aquáticas bifurcadas e poderia turvar de granizo a pele dele, constelada de anãs brancas, eternas crianças de fábulas estelares. Tive de fazê-la adormecer. Então ele se foi, sol negro no sono da noite dela, tão desesperado quanto minha cativa invocação. E os olhos violeta rondam meu descanso, à espera do momento letal em que os véus serão rasgados pela respiração pausada dos sonhos profundos, expondo as sete chagas paradisíacas que navegam o milagre sombrio de minha liberdade lúdica sobre a terra e ardem, ardem, ardem, como pulsares caleidoscópios, extintores de minha parcimônia e docilidade. Tenho receio de também adormecer, profundamente a deriva, na asa do irmão noturno que segura nossas mãos de raízes líquidas esvoaçantes e acordar como uma densa devastação oceânica sobre minhas próprias horas seguras. Creio não poder voltar desperta senão como um abismo de água universal dissoluta, como um voo distante, distante, distante, destroçando portos e naus. Receio a ancoragem desta mulher-tempestade, mesmo que seja para revê-lo, estrela da manhã neste reinado de dilúvios, com nebulosas sumidouras e jardins de romãs. Tenho receio. E fé.


 



Gárgulas de ouro


Gárgulas de ouro, as vírgulas no semblante ensolarado. Perversidade é o sal dos ofícios, persiana suturada que nos priva a pausa no púlpito das narrativas densas dos planetários. Um verso massacrando o outro, sem respiro ornamental, escafandro para salamandra na maldade do malte.

Que minha língua não se poupe de encantar-se no fonograma dos banquetes astrais. Que seja a papoula percebida, prímula portuária na papila de minha solitária sensação.

Sem cortinas ou córdobas, com o cáucaso dos terrenos inóspitos integralmente revelados ao paladar profano das premeditações.

Há temperos de pontuações pitorescas na aparente inércia inorgânica das paisagens.

Há uma mancha solar em cada gralha azul. Parábola de pálpebra em antiquíssimos pinheirais, piscadela à vulgaridade da multidão.

Há simbiose de compêndios nas unhas hiperbólicas — com glitter em crise cristã, imito moscas turquesas. Camadas sobre camadas, para que o esmalte sempre fresco impeça a digitação.

O silêncio é minha ourivesaria durante estes dias de miseráveis pratarias. Sufocando cordas de místicas e fêmeas vogais. Vocaliza-me a ciclovia vocálica, os contaminados pedestais — cobra ereta, rosa sem estética, narciso no cisto, notívagos & comensais.

O geocorpo, safira síncope, migrando ao magma literato. A gramática contorcendo o mistério do tísico e palatável dito popular.


 

Garras desertas


Os ferrões nascidos nos parques de diversões. Quando lia, enquanto o mundo brincava meu nome. Quando leio, enquanto tu brincas meu nome.


 

Gato alaranjado


O gato alaranjado — de Marosa ou de Remedios? — me ensinou a capinar. A coluna curva em corrosiva vigília, estalando as vértebras como estalam os passos dos sacerdotes pelas matilhas. O gato disse: estale, capine, estale. Estalo, capino, estalo. Sou eu pelos vitrais, crescendo no roçado do ocaso. Flora e pólvora na organza dos dias. Estalo, capino e também mio. E ninguém me corta.


 

Gralha azul


Sou eu que decapito a visão que tenho do mundo, aqui, de meus olhos com raios catódicos, de lava benzoica triangular.

Geômetra de minhas aturdidas vísceras, suplico-lhe que me considere fábula de mil amperes e não me obscureça os nós que suturam o norte ao rosto de meus astros ancestrais.

Pois sonhei a noite negra mortificada. Madruguei a sílaba de jejum do azulado faquir. Diafanizei a pele prisma no lago lunar. E o sol não deixou de fulminar a retina, amanhecendo tirano sobre minha pacifista putrefação.

Salmo silvícola na porta entre minhas patas de cinzas. Caminho, celestemente empoeirada. Eis-me aqui, pó de mundos. Papaver somniferum, Atropa belladonna e euforia de sinos da catedral.

O dia cerra os punhos neuróticos sobre a dilatação das nuvens contemporâneas. Poesias de cantadas fáceis fazem coro às carrancas políticas insuportáveis. Novas pichações cometidas durante a madrugada, maníacas como as fibrilações da náusea cromática.

É o que vejo pela janela, eólico écran. Martelo os dedos sobre o tambor que é esta cidade triste, já que esquece seu passado simbolista.

A modernidade é uma farsa para março, uma framboesa gaseificada, portanto artificial. Pudera escrever, escreveria. Os ductos sanguíneos decorados com papoulas e flores campanuladas, violáceas e roxas quase pretas. Mas meus feriados estão feridos pelo hematoma silábico dos relógios romanos.

A única dúvida é o uso correto da crase no coro dos cucos. Preferi recorrer ao seu diafragma oblíquo, por lembrar uma adaga pagã ritualística no flanco fútil dos fidalgos.

Refletir a flor, em tônica de andro ou gin. Poderia. As mandíbulas gimnospermas estão abertas na ferrugem do sol. Não há espelho que suporte a corrosão do grito mascarado em luz. A barbárie do brilho fere o rosto moderno que contemplo. Giraria ao astro, mas me fita como álgebra da gérbera. Que tipo de solo gramático deixarei para que sua caligrafia brote sem o mistério dos medos?


 

Guardião da morada linfócita


Há retorno absurdo no invólucro de Éris. Absoluto ar de Via-Láctea, pela janela. Astuto éter no leito, pela discórdia das carnes na casa do corpo. Os joelhos, quando se dobram ao solo, simulam o felino — guardião da morada linfócita — caçando orações de louvor à terra radiada.

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