Habeas corpus
Era preciso blasfemar para beirar a santidade que as coisas transpiram. Não sabia de outro modo. Não quereria das cinzas tantas que machucam os olhos, colher fartamente as ramagens pequenas que juntas ali flutuavam. Haveria de ser penosamente, com o joelho encarcerado na tábua espinhosa do caminho árduo. Labuta de faquir, estrofe hermética de arcano zero. Balé passional de alma martirizada, chafurdando os artelhos no rastro luminescente, minerando a tenra escuridão no cerne dos albedos. Sabia deste excomungar amputado em suas repetitivas condutas. Poderia abençoar-se. E assim o fazia. Tatuava mentalmente um símbolo protetor no centro da testa, nome de anjo, estrela ou arabesco, e fitava-se para enfrentar a si. Gladiador versus gladiador. Extinguia-se. Acendia um cigarro e começava a escrever a órbita do sol perfumando herbários. Enveredava-se por labirintos de musgos e deixava-se inundar pela umidade da terra. Brotava ao relento, secando a pele das mãos com a agitação frenética dos pulsos no sereno. Lia runas na terra seca da epiderme. Traduzia. Fermentava-se no abecedário pagão, e herege de si, perdoava-se. Humano, viciado, passageiro. No fundo da xícara de café a nervura de um escorpião. Escrevia: árido, deserto, sombrio, sarça ardente, mineral. Deixava-se absorto no nirvana do camaleão e do cacto. Misturava-se à tempestade de areia. Lâmina, naja, absoluto. Beatificado. Mais um cigarro, mais um café. E a noite esplêndida avançando em marcha de dente-de-leão na gramatura ofuscante do papel. Invocava-se.
Handroanthus
Apelo ao cárcere evangelista da alma: do diabólico levite o encanto. Sem tranca ou trauma. Os clamores, não os flagelos, sejam autos do cinéreo espanto. Os corpos de cinzas esfiapando amarelos. Voem bentos os ocultos sexos, sobretudo, acima das ervas daninhas, lançando plumagem e susto. Tais quais cênicas harpias, consortes cômicas do luto, ensolarando réstias & ventanias. Pois que o terror da necrofagia abriga mais verdades herméticas que a castidade da hóstia fria. Que sepultado seja teu ócio, adubado como as heréticas flores do ipê em olho-ópio. Para o diamante, que entenda o carvão. Negro como a asa do corvo. Para o ditame, que reconheça o estorvo. Selvagem de léxica solidão. Não quero complacências cegas. Quero do antro, das cadavéricas velas, a confissão botânica sem tísico nefando. Sê Livre! Exumado! Que o canto escuro calado é o sepulcro finado, sob os cascos do Estige.
Heliose
6:00 am.
O dia a encontra. Com um martelo de feiticeiras. O vapor do café é a fogueira que decide ativar. Poderia poupá-la do foto envelhecimento interior, com seu rosto abstrato: nenhuma lua, nenhum quadrúpede. Esfenoides imóveis, asas absortas. Apenas o cálculo, criteriosamente revelado, em expressionismo facial de espécime taxonômica. Ela, zoomorfa como quadriga apocalíptica em autoestrada planejada, o sonda com o neurocrânio odonata, preparado para os aparatos curiosos do laboratório solar. Com uma esferográfica mental, rabisca sobre sua testa simétrica: uso externo.
12:00 pm.
Semáfora, a libélula fêmea deposita seus ovos em estacionamentos lotados. A luz refletida pela lataria dos automóveis imita espelhos d’água.
6:00 pm.
Festins, repugnâncias, minas de carvão. Exauridas. E as mãos de querosene, com um incêndio astuto a escorrer sobre a gravitação das almas devastadas. Pelas instalações mais infernais: onde os opositores ancestrais são envernizados em corpos de gigantes cogumelos polimorfos. Inocentes e jovens, frente à barbárie dos querubins em santuários de fast-food. Banalizados pela melancolia industrial de madonas dopadas. Lógicas e fálicas. Ela pressente suas mortes cifradas. Quando desconecta o interruptor. Carbonizam em alegoria de betume, políticos, no fermento escuro. Stercus diaboli.
12:00 am.
Se as lâmpadas fossem navalhas, cerraria as pestanas de lobo-guará sobre o córtex dos corredores mortiços desta massa cinzenta que impede o símbolo da faísca selvagem pelas escadarias. Mas os olhos de tungstênio não se fecham.
Hora do ângelus
Dínamo dourado, aríete arguto na saliência do corpete em vésper. Mar de osso moído pelas ventarolas do ocaso. Choca-se ao cárcere, um poema de rilhafolles. Extravasa-se o intacto — intoxicado, espiritual — na ficção do signo súdito.
Durmo-me na tensão desta falha tectônica. A mão é uma ave na cordilheira salina do travesseiro, singrando sonolências ilícitas. E a ideia da noite, palavra ácida, respira, dissolvida como uma cápsula ansiolítica, sem fanopeias. Invocando sonoridades que dirão equivocadas, mas que ditam, caleidoscópicas, a madrugada mediúnica em nado sincronizado. Suas escamas sintéticas no harém da névoa velam por assombradas análises, sintomáticas de fenômenos nada febris.
E sobre o todo tantálico veludo, o inaudível e lúdico sussurro:
— Por Orfeu, que sejamos ofídicos, sempre sonâmbulos!
Recitamos um ao outro, da mesma falésia silenciada. Ardemos eloquentes na enfermaria da escuridão, feitos de missa negra. Enquanto oram palavras de penitência oca, com o pecado claro enroscando-se nos joelhos sem verbo.
Imperativos orientais
Ensina-me a resistência de tua pele, onde tudo mais inflama. Meu falso pudor cromático de gueixa nada articula nesta tua densa floresta solar. Meus leques são sondas imaginárias em teu planeta tatuado de luz imperatriz. Toma-me a defensiva melanina de quasar como se pálida carência lunar pelas praças fervilhantes, plasmando reinos alienígenas de coma prismático. Porque não me posso sem tua noite de astros terríveis. Porque não te vales a força sudaria sem a fragilidade dos biombos. Impressiona-me, dandelion, com a silhueta de tuas monções em brasa. Exercito-me papiro, sepultado e vivo em teus arrozais e magmas.
Iridescência sem palco
Usar mil armaduras durante o dia. Cantar a dor, o sucesso e a luta, alheios. Entender que é necessário juntar a sua voz fraca ao vozerio dizimado, para que reviverem em força e glória: o mínimo que se pode fazer. Mas quando chegar a esperada noite… fechar os olhos e ver o que resplandece por dentro, em verdade, sonho e respiro. Um beija-flor se alimentando em um núcleo amarelo. Polinização sem aplauso. Iridescência sem palco. No fundo mais distante e vazio da floresta.
Lamento das ninfeias
Prólogo do narrador:
invocava-se a lepra sobre os metais: a única via secreta purificadora. A beleza seca, em sudorese alquímica, atendia ao clamor. Uma tempestade anímica. Nada poderia ser dito que delatasse qualquer injúria em seu testamento coletivo encarnado, justo e aparentemente silencioso. Anunciava-se aos martelos e bigornas das ossaturas atentas ao rumor do húmus e dos misteriosos fungos. Sem golpes. Como foi dito, desde o começo das escrituras. Sempre em reposta. Aos que compreendem a utilidade das gárgulas, sim, ela responde. Não são foices mortuárias, suas palavras. São glifos de caracteres norteadores do processo de colheita, timbrados no muro das lamentações encefálicas. Onde há fome, há o assombro das reciclagens. Enquanto o mundo deságua seus sistemas falidos, insetos iridescentes escorregam pela artimanha pegajosa dos túbulos de orquídeas. Afogados pela sincronia das precipitações. A carne é móvel. E as florestas são coloridas, sempre, pelo sumo da putrefação.
(esporos sobre lamaçais. pólen na toca de víboras florais)
1ª ninfeia:
(bucólica e dolorosa. como a bela morte pingando anilina vermelha e rastejando sobre a paleta clara, apesar das rótulas castigadas por evangelhos)
— Dê-me passagem. Sou a terra fértil da falésia em ostinato, mulher com nuvens.
O inquisidor:
(em fraude de imposição estética)
— Ainda em nigredo, clichê de lótus?
2ª ninfeia:
— Sim. Não sei quando isto terá fim. A narrativa é um jardim de água, cuja fonte é uma catarata dupla. As percepções são hastes diminutas em covas de perfumistas. Os dervixes estão vendados. Talvez, porque não precisem ver. As pinturas são vivas e nadam pelo ambiente aquecido. Não as vejo. Sou uma tinta diluída no sudário de um rosto comum, em colapso. Graças aos deuses, perdi a divindade.
3ª ninfeia:
— Sou um pântano e o retratista me desenha como um gerbo. Amistoso demais para o abate laboratorial. Em sua retina, espelha-se em mim: cobaia das sombras do balé de efêmeras.
Colóquio da chave de ouro
(o narrador e as três ninfeias):
— Não se deve entender. É desta forma que a pura luz nos toca os ombros prismáticos e o movimento das mãos a traduz.
(o arco-íris só acontece quando o raio solar, refletido pela água suspensa, alcança os olhos do nefelibata em aproximadamente 42°)
Fim
Lantejoula assombrada
Ibis vermelha & gralha-azul bicam o espírito santo. Não há transporte sadio no anti-silêncio das sirenes. Fossem sirenas, moedas pacificariam a viagem quieta nos olhos dos mortos. Mas mercadores gritam mais alto, ensanguentando asas carnavalescas pelas vidraças escrotas das metrópoles. Fossem necrópoles, poderíamos passear pelas alamedas, sem medo. Mas há lantejoula de ressaca no corredor. Lantejoula assombrada. Toda baderna é uma grande mentira comprada. Arderão no cosmos, todos os mentirosos. As aves continuarão a bicar qualquer campo de guerra. Pode esquecer sua mídia. No mundo dos espíritos não existem outdoors.
Laquê
Há 2 mil anos aguardam o nascimento da novilha vermelha no calendário. Vegetariana há duas décadas, circulo em colorido todas as datas pagãs — celtas, etruscas, andinas & siberianas. E não aguardo nada, nem o bode de mendes, nem o bezerro dourado. Já encarei o minotauro pastando estrelas nos pratos da balança, um asteroide carregado de exótico material genético, uma sílaba mágica na euforia dos fósseis. Não há espécie escolhida na bíblia de idioma atômico. Os observatórios definham com o tempo, perdem arestas, apontam para rotas inusitadas. E as galáxias são anoréxicas.
Leão azulado
Ontem pensava nibiru. Hoje, azulinopoulos. Paira um leão azulado pelo vapor de gálio do gêiser. Enquanto esteno, euríale e medusa, em trânsito, encantam-se com polissemias que saltam da juba mitológica. A pineal está restabelecida. Foi o fim de um mundo sem inspiração, no cerebelo.
Legião
Só me incomodas quando te voltas para um modelo antigo, para obrigar a borboleta a nascer, ó útero de minha terceira-pessoa. Não tolero que me conheçam como uma pálpebra funerária sobre a arte da pluviometria. Veja bem, ilhas filipinas não são áreas para habitações, mas meu quarto é minúsculo. Foi construído muito mais profundamente do que os sete palmos tolerados. É uma pequena caverna protegida da radiação. Um casulo contemporâneo. Destes que se alugam a alto e injusto custo em anúncios de jornais. Como os apartamentos solitários em tóquio ou na terra do tsé-tsé. Também é cordata pela cláusula da lei que impede a gestação de mais um filho. Que se evite a superpopulação, mas quantos gênios não deixamos de nascer? Como disse acima, se obrigas a borboleta a nascer, o prematuro não terá chances para livremente nos desenvolver. Eu costumo ouvir um lírio encarnado chafurdando a areia desolada que protege este meu casulo-devoção. Penso exatamente o ponto neste mundo dos ombros. Mas, quando as pessoas estiverem livres, no alto das máquinas, juro que me desencapsulo.
Lendodeus — a terceira pessoa
Não há narrativas de lentidão gótica em meu jogral. Soberano de mim, um eu lírico beirando o próprio espetáculo. Nunca me alcançarás, ó, siamês de cordas, com a ponta dos pés mergulhada em pseudo-biografias. Ele passa pelas máquinas com seu canto de blecaute. À tona, deslocado em minha estatura de braçadas sombrias. Com a linguagem crua de um passaporte alquímico, transmuta-se polígamo, entre estatuetas do Nilo enlameado. Nas mãos, um sortilégio, para dilatar e contrair o tempo. Meu húmus nigromante: seu código extingue diálogos em convulsões de ano-luz, sem tocar a vertiginosa genética do jornal efêmero. Nem parto normal, nem fórceps. Veio ao mundo a toque de caixa. O corpo ralo no escoadouro do tambor. Não veio para aqueles que se vai à vida, levando. Vai boiada, com aro e chicote no tímpano da memória. Nem milagre, nem mercado. Nem gaza, nem cananeia. O berrante-cornucópia miscigenando a polissemia mágica, aos lobos e cartéis. No auto desmonte, a espora de prata andante troveja a matilha de dois nomes inexistentes. E mais um, ninguém. Fraterno? Sim: aos barrancos. A deterioração precisa é rápida como o éter na caixinha de vidro. Ratos prateados na oração de uma mutilação sacrílega. Direis: aquário de carnificina translúcida? Não, ó, blefe de eutanásias. Apenas câmara clara de mãos mortuárias. Por uma vida que imite a arte. Todo oposto a isto é vácuo de espelho rancoroso. Pelo despertar das górgones na musculatura do rosto, a seca fatídica de uma ontologia oculta. Sibila, bile-sílaba com olhos vendados de escafandro e punhos de ferro derretido, enrijecidos pelo protocolo do tempo e seus eflúvios de fúria arrogante. Para ser eterno em mim, ó, síncope das mortalhas, antes é preciso tocar a imortalidade. Não fugir do altar, onde o fungo alimenta os ossos com um véu de noivas viúvas. Assumir o compromisso que nem mesmo a academia de letras ousaria desencavar. Para ser eterno é preciso enterrar no esterno o punhal moribundo, com o beletrismo das estacas devolutas. Casar com este desconhecido, anônimo de multidões, que caminha sobre a água de minhas almas, convertido em ar de pântano, fabricado pela fome dos crentes. Fundir-se a esta aliança líquida de sangrias, que se alagando, dentro e fora, forra com fábulas de maremoto as sonolentas habitações com que te mentes, em morfina e mágoas. Fugindo do desencanto de toda podridão. Parnasiano, seguro do claustro. A sensação de formigamento não te moves como a catapulta dos exércitos? Tua casa às vésperas do fósforo e a inércia te entope com brotoejas de falsa misericórdia. Ah, que não te quero sondando meu lastro, com íris de mocho acuado. Já me bastam os tristes vampiros e os nobéis, amotinados em sua relação hospedeira de troca de fluidos: sangue roubado, cuspe e beijo morno. Onde estás? Ó, velho dos marinheiros hereges. Onde é o combate naval das vísceras em ebulição, deste que te empala em fotograma de fleumas? E onde nos afundarás? Rápido, cadafalso. Te contei dos pés de levante, há séculos trotando atrás de ti. Exorta este que te embrenha no abecedário, como se ousasse impedir o início de nossas existências, com a magnificência daquele que se foi, expulso de nós. Vês como tenta nos ludibriar? Não o deixe. Não o deixe só. Sem nós. Estou em ti.
Leprosa metalla
Contei do petróleo no poema do órfão-azul, mas o disse antracito. Contei da Crimeia nos manuscritos de dilúvio ao mar negro. Contei da lepra dos metais, o ouro roubado que fende os cascos do homem. Levito leviatã. E ainda me dizem alienado. Enquanto os caramujos africanos exalam a meningite da cobiça humana, mergulho nas farmacopeias, pensando em Omulu. Ao incinerar aquele que é imagem e semelhança, lembra-te do enxofre de Paganini: os excomungados nem sempre são culpados.
Lesionária
Entro na casa da moléstia, molusca amolecida, a alma liquefeita. Gárgula pingando, gota a gota, gatuna secreção. Mergulhados, os dedos em cesto inundado de papéis — seriam poemas, mas é livreto de muco — redação da senilidade material, rastro de lesma. Vai a porta do coração patinando em maremoto, à deriva continental de um quarto-torre, quarentena em cadafalso. Pulso plácido, estado penoso. O sol esmaece por dentro, noviço no novelo nebuloso do rosto. Por que a porta? Porque entrei na casa da moléstia pela abertura comum das residências. Fui pela ciência, abcesso em excesso, resquício das enfermarias que abrigam almas minúsculas, que não enxergam, mas brilham. Porque sou frágil em minha porosidade, gume a gume, globin de grimório, a deixar correr no corpo a viscosidade do universo, único algo (g)ótico a me derrotar. Pingo. Gripe. Grito mole. Adoeço para me curar? Secreto cápsulas de confusão no esqueleto da virose. Rememoro a física de outra espécie, a que entra em todas as casas que respiram. Não há como contaminar qualquer ser com estas palavras de purgatório. Antipiréticos provocam náuseas. Eis-me aqui, sem febre, na porta da casa da moléstia.
Liana
Carbonizar a prosa límbica nos nervos aquáticos de sete rios, e assistir a cinza dos plurais cremando o pulso fraco do céu. Até que o cenário desenrole o dorso de uma anaconda no centro respiratório. Varanasi boreal, rama oscilatória. Mergulhar na placenta da visão, em retorno enigmático. Depois levantar das águas os olhos — apenas os olhos — deixando o corpo escamado na pia batismal da terra. Circular as vértebras no líquido amniótico: balé de escamas, cipó boiando no cálice crematório da floresta. Beber no retorno do ritual das matas. Alucinar a sede singular do barro, a mística da geomancia. Chover e secar sob sol até arder pela copa das árvores. Semear a alma das nuvens. Varanasi oscilatória, rama boreal.
Libélulas lupinas
Aponta o fascínio lunar e um lobo sai do humano. Inevitável. Mas não é a única alternativa para o instinto que nos devora e nos faz devorar. Há de se entender o sol pelas crateras e fissuras minguantes. Não é simples. Mas me repito, não é impossível. Libélulas lupinas são completamente viáveis, e também uivam, crescentes. Nunca acorrentarei nenhum de meus poemas à terra e nem tampouco à sociedade. A poesia tem uma única função na minha existência: ir para algum lugar onde nem eu mesma — corpo terreno, ser social, micróbio da atmosfera — possa me alcançar. Se a terra chafurdar nos fundilhos da letra, será como simples remendo mítico. Portanto, ali na figura da linha seta, a terra será etérea. Apenas um arco curvado na confusão cromática da aurora. A rocha tem cabeça de filósofo e se chama Pedro. O tigre disfarça a listra dos filhotes no berço de juncos. O quasar massacra diamantes no intestino das constelações. Mozart encanta gatos com a sinfonia lacrimosa. Satírico é o armagedom. E a hipertrofia dos sentidos é apenas do leitor.
Língua laica
Em epiceno, a carapaça. Por ínguas ígneas, a língua laica. Enrola a pele caprina do tambor com a pele da jiboia, para sintonizar as rodas da terra na hipnose aérea do décimo-segundo andar. O dia é de eclipse com sol virginiano e há a figura de um imperador emparedado na torre da papisa com falsa barba azul de faraó. Resgata o papel masculino ancestral enquanto orquestra o ritmo híbrido. O couro esticado reproduz o choro da caça e do caçador. Balindo, mulher mascarada, marca o passo no antro de suas silenciadas construções. Na percussão uterina ressoa a batida de um acorde-oxumaré, pipoca-omulu, sinal poderoso: a palha no rosto, o guizo do milho no estouro. Ovula, fertiliza-se, e encanta a grande serpente que dorme na palavra imperatriz, amplificada. O som atravessa paredes, areias, arcanos e cascas.
Língua límbica
Pavônia, selada e carimbada. Incandesce Mantisia, gêmea acromântica, no ponto flutuante dos dígitos da dedaleira. Que a pólvora seja a purpurina na pluma aritmética das hipálages. E assim será. Costurando escorpiões com a roca da retina de anúbis. Forjando rochas e galerias de gárgulas cristalinas. Sóror sonora, mão eólica. Cinco falanges náuticas em chordata névoa. Cinco irmãs de caridade no alvo herege das pedras rolantes. E o corpo pentagrama no centro da prece de um sistema solar, artífice. Com cinco aeons o pleroma revela o que o neônio esconde. Que a língua límbica leia o tato tilacino de todos os olfatos, fitando todos os filos como se famintos filhos.
Louva-deus
Ao fitar o trágico enredo de minha náusea, entendo o filme de minha comédia mórbida. É no instante tísico em que o sorriso e a lágrima se perturbam, como na dupla máscara de teatro, que mastigo ou vomito meu deus: o homem estirado na cruz, com pés de holofote, pingando seu espectro de palhaço no caminho árido. Sua carne paródia é ferida exposta para meu martelo de feiticeira. Eu o julgo e o prendo, como um inseto seco em estojo de colecionador. Depois de o pensar pagão no centro de um ritual em florestas magnéticas. Onde há repulsa, há de se obter a transfiguração. “Não haja mortalhas entre nós”.
Louva-verbo
A louva-verbo no embrião da linguagem. Um caramujo, um musaranho, muralha ruída na família tipográfica da soricomorpha. Qualquer escaramuça letrada. Um verso com escorbuto na mandíbula da mantis, em pose circense para o palco sem substantivos econômicos. Algumas luzes estratosféricas na laqueadura dos advérbios mais abjetos. Nenhuma objeção, nenhum adversário. Nem o marfim agonizando no lábio leporino da savana, nem a fisionomia apática das amebas. Dizem que a revolução é coloquial, para angariar resultados sociais eficientes. Não acredito. A democracia é apenas utópica distração, cheia de palavras disfarçadas em urnas. Entre eleições e eloquentes promessas, voto nos sarcófagos suturados.
Luiza
Ainda me chamo pangeia. Fermento o ectoplasma randômico no fogão a lenha. Para que o trigo avance pela chaminé e alimente os pássaros com o sonho totêmico das árvores genealógicas. Até que no corpo nutrido da ave, a onomatopeia de um mito, pandêmico e intacto, suplante o grasnido dos aviões.
Lúcifer no céu, com diamantes
Ave, dia do meu século virtuose, suspende-nos em tua arcada cortês. Teu bruxismo maniqueísta mastiga o pão ruminante que é minha alma contemporânea. Caricato, tagarela, irisado. Feldspato, feldspato. Teus olhos imperiais desmatam minha aldeia. Os selvagens de minha noite cobrem o sexo com folhas surradas de papel-moeda. Múmias, teus antepassados.
Eis-me, sobretudo, em ti. És um senhor aerodinâmico, com casaco verde pasto e caninos rastreadores de lebres. Repetindo o tempo todo: quantas horas ainda têm?
Feito torrão-de-açúcar, vejo as pineais apressadamente mergulhadas no líquido negro de tuas manhãs mazelas. Ave, teu café, o evangelho venenoso para o sonho profundo. Depois, a assepsia e o espelho, varal de naipes, para a correta vestimenta. Pintamos a cara e negando a origem primitiva, desfilamos, rústicos, pelas avenidas. As vitrines nos ditam como estaremos salvos. A fome de uma vida inteira no ritual matinal, padecendo o jejum dos catequistas. Sobra a cabeça de um deus intoxicado pelas bandejas ofertadas.
Sou-te Salomé com bandagens frias em tua febre decepada.
Ave, dia do juízo final, tu nos tira a fórceps o pijama dos fetos notívagos. E vamos pingando pela rua, cabides vazios em bizarros gabinetes. Decibéis, androides, tabloides. Homem objeto de hospitais e prisões, criatura bomba. Basta uma dose morna de leite, e adocicado retorna ao berço. Manso, manso cadavérico.
Antes de ti, bem-vestido dia, os monstros eram puros como as bestas livres nas florestas, sem especiarias importadas. Eram contos de benzedeiras, sem versículos de correntes.
Haverá mesmo a vida ultra uterina, fora teu marca-passo?
Ilumina-te, meteorito.
O apocalipse é agora.
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