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Neônia - Letra M


Madrasta mandrágora


A causa das lesões que induzo em minhas personagens ficcionais é a constante presença do órfão azul entre elas. Celeste e necrosado. Tento despertá-lo com a luz centralizada do holofote psíquico. Tento reproduzi-lo, mártir de beatas, como ditam os zodíacos. Prefiro desta forma. Ele tem o perfume do álcool de cereais e quando se doa em autocombustão produz uma chama maníaca sobre geleiras. Embriagado de orfandade solar. Meu coração real tem um pai e uma mãe, portanto meus passos físicos sempre apontaram para uma estrela de norte possível, embora cambaleante, já que os deixei para seguir meus próprios caminhos. Mas meu órfão azul, antracito, foi abandonado pelo cosmos, expulso de todo paraíso, caído e usurpado. Menina gritando o eco de um poço. Menino calado na neblina de um sótão. Andrógino rebelde das chaves perdidas. Núcleo mágico. Minhas palavras-orações são partículas eletrificadas ao redor de sua aura-carapaça. Gravitam seu corpo-orfanato. Assim me embalo, imaginário. Até que nossos corações não pesem mais que uma pena de tinteiro, e se encontrem no lar de papel, seguro e volátil.


 

Magnólias & Myosotis


Magnólias & Myosotis antimelancolias na melanina, e no miocárdio nèon-simbolista. Uma notícia de capa preta me balança centrada no circo hormonal. Vai estrogênio, volta estrogênio. E eu, feito negro pássaro, simulo voos andrógenos ao meio, para que as musas impassíveis animem as tábuas ouijas (mesmo que digitais). Afogando Netuno na casa um de sua própria água placentária, para que o mesmo se enrole em sua própria cauda (e calda) e se fixe na casa 12, como uma lápide fria que apenas indica o esquife comemorativo de uma celebridade animada em seu singelo (porém tranquilo) anonimato.


 

Manuscritos da cadeira elétrica


Prosaico photomaníaco, sabia exatamente o tracejado dos pontos de luz solar a cada estação. Anotava o toque helioso pelos móveis, até traçar seu stonehenge pela casa. Entendia que quando o raio belicoso fosse como uma seta apontando o toca-discos, frutos de sumo doce deveriam ser dispostos sobre a santa ceia de quatro pernas, como a cornucópia das pinturas renascentistas. E nem as rendas da janela se fechariam para os insetos de astúcia eólica, aqueles com olhos de fogo crematório. Era muito alta aquela torre, fermentada até brotar como um cruzeiro de braços abertos para acomodar o corpo de um ícaro qualquer, um avião de donnie darko ou um asteroide decepado na placa do parque dos dinossauros. Quando este ou aqueles caíam de ideais, já que não eram seres de pessoas, a cruz os aninhava como um sagrado coração na vestimenta dos santos. Assim via o edifício, um aparador de carnes celestes rebeldes. E tinha a música roendo as pedras do observatório astronômico, levantando os véus do minúsculo sofá. Os gatos nunca se importavam com o dia do cão, só seguiam a manada dos raios purificadores, que miavam como eles. Sírius e síria eram distantes como a casa das máquinas, e inofensivos como o cérbero do livro, fechado há meses. O sol cantava um nilo sobre a radiola e três pirâmides se alinhavam na sacada, com o cinturão de órion no guarda-corpo. Mas seria passageiro. A lua, com aquela cara deformada, passeando enlouquecida pelo cabideiro de tesouras e facas, não o deixava esquecer que as moiras são aranhas prateadas e também choram quando cortam cebolas. Analista de astros, do seu trono ardia impérios e asfaltos caluniosos. Calígula? Não. Lancelot com ascendente escorpião.


 

Manuscritos do dilúvio ao mar negro


Original? Jamais esta palavra cadavérica ostentaria meu brasão. Apenas um pecado geológico assustado timbraria a assinatura que escapa da ostentação das nomenclaturas. Sim, a uma cratera de címbalos no adjetivo da corça cederia o eu oblongo, como um lençol de água obediente. Este, o cílio correndo de vento sem a contaminação das cores. Nem igitur, nem ignição. Percebes? A meia-noite é uma cópia obscena do helesponto. Lembra-te que no mar desta falésia deitada pelo ciclone, dorme uma moça descuidada, com cabelos de lã tingida. Pura mitologia. Dizem que o abalone refaz seus dias de carneiro montanhês. Prefiro os sátiros rolando de rir pelo capim. Pata de bode. Bruxaria? Jamais esta palavra corpulenta assoviaria a lua que regurgito, marinha até não mais naufragar. Mas se quiser, contaria a gênese do sobressalto. Posso, enfim dizer, sem originalidade, já que os mapas são assombrações vertiginosas da memória aquática. Não há mistério, nem hermetismo, apesar das clavículas suspensas no jardim dos ossos (flutuantes). Respira (com o diafragma nos cnidários): há o cão mastigando um coração triplo de polvo na metamorfose de narciso (no canto inferior direito). Seu esqueleto de formiga na costela deteriorada do cérbero expande como uma pústula. Tão evidente como um edema irreversível. Se não vês, não me tome pelo plágio obscuro dos pincéis cerrados sob tua pestana de centopeia densa. Catalepsia de salamandra: porém. Podes conceder-me o oriente de tuas percepções? Ficaria gratificada. O absoluto é extenso como um fêmur de dragão dopado na corrida espacial. Sejamos interlocutores destes panfletos animados. A copista de fósseis imaginários também agradece. Quando chover, pensa na genética das arcas e suas amplas galerias. Estarei pensando em ti, como um xerox de maremoto.


 

Mare crisium


O animal farejador encontra dez mil metrópoles no celibato cinza da ribalta. Recebe o flerte incorpóreo das tectônicas em comunhão no tato pernalta. Intui um oceano de afar na aguda depressão salgada. Vulcânicos, ativos, os cornos trespassam a inércia azul hematoma das larvas. Eritreio faro aristocrata, corre plúmbeo, naja. O animal farejador avança pela nuvem piroclástica das vagas. Seu drama flamingo infiltra-se em minha natureza humana como alga. Na agonia trilobita dos lagos de malta. Onde tudo mais falha, o animal farejador exalta. Locus, léxico, leptis magna.


 

Maria do caixão


Preciso muito escrever um POEma. Mas me fixo nas unhas dos pés. Estão longas. Crescem como a intenção imagética do olimpo — andinas, andantes, androides & ansiolíticas. Não acho o cortador de unhas. As palavras desvirtuam-se como as hemácias em altas altitudes. Cortam-se. Alteram-se. E não sai uma linha decente. Definho-me. O poema adulterado de quitinas não risca nem uma quelícera. Crise poética. Crise colágena. Os hormônios gritam em Caps Lock: MARIA DO CAIXÃO.


 

Marselha


Foi belo e doloroso focalizar a atmosfera do quarto vazio. Mas algo extraordinário e fora do contexto da ausência insistia em cristalizar-se na aura transparente do lugar. Não era um jogo óptico do corpo da luz quando trespassado pela água que vertia entre os cílios. As lágrimas estavam secas e a face estava riscada por filetes minúsculos de sal, tão particulares ao pranto concluído e ao rastro dos caracóis quando iluminados pelo sol. Tratava-se da união da água e da luz interna, ambas despertas com toda fúria e lentidão das descobertas presentes nos dias de fevereiro, o mês febril. E a visão ilusionista era um conjunto de pétalas sobrevoando aleatoriamente o espaço recentemente desocupado. Pareciam asas amarelas ressequidas de girassol. De onde viriam? Decidira esvaziar o canto sagrado para que a música das catedrais soasse pura e sem choques com partículas de qualquer natureza que não fossem corpúsculos ou ondas luminosas. Puro quantum de hálito angelical. As pétalas destoavam da paz imaculada, que imaginava acompanhar a morte limpa a que tinha se permitido. A morte fora muito limpa. Era o mínimo que podia ter feito por si própria. Havia cansado das pequenas mortes macias que lhe ofertavam. Deixavam-na coberta de cortes superficiais e agonizava com a expectativa do golpe fatídico, que nunca surgia, sempre encoberto pela piedade do não-te-magoarei-assim-tão-derradeiramente.

Fora a segunda grande morte. Dois grandes fevereiros. Duas grandes febres. Dois poderosos naipes. A espada tripla e o quadrado dourado. Três de espadas e quatro de ouros. O primeiro arcano, não tolerava sua alma e cuidava de seu corpo com doação fraternal. Alimentava suas células físicas carinhosamente e interpretava suas vertigens metafísicas como anomalias que logo esmoreceriam. O segundo arcano, o mais amado, reagia à sua materialidade com o rigor dos ascetas, como se sua realidade fosse um receptáculo profano a que se deve submeter o jejum ritualístico, para que o espírito resplandecesse, deixando o átomo relegado ao translúcido dos ideais intocáveis.

Os arcanos eram perfeitamente adaptáveis à sua confusão de casulo. Tornavam a seda protetora mais resistente a qualquer predador externo. E assim, ela os mantinha impiedosamente atados ao seu corpo e a sua alma. Escudos, fabulosos, adorados. Dissociáveis, com a duplicidade mantenedora da sanidade. Pois a sanidade se consegue quando os limites entre o sonho e a realidade são bem distintos. Pelo menos era assim o pensamento norteador de sua conduta mais aceitável. Para aceitar as pequenas mortes, para caminhar pelo dia com a máscara solar dos corretos, para sondar a noite com os olhos vendados de luar. Para silenciar sua própria covardia universal.

Ao primeiro arcano devotava seus silêncios benfazejos, sendo a aprendiz paciente de seus relógios incontáveis, sua sapiência racional, sua tranquilidade pacificadora.

Ao segundo arcano dedicava sua eloquência margeada de fantasias. Talvez, com ele, tenha sido mais sincera, pois aprendera muito cedo, que seu coração só se manifestava com a palavra.

Os arcanos cultivaram seu corpo e sua alma. E quando ambos cresceram como duas gigantescas fortalezas no nada da aridez, nada mais restava que não fosse o vento uivando sonatas entre as duas paisagens.

Decidira a unificação.

Agora, que viesse a terceira lâmina. Não a usaria para o suicídio desesperado, mas necessário. Romperia de fio a fio a mortalha sedosa de sua casca. Brotaria alma e corpo com o voo das possibilidades. Com o sonho nas plantas dos pés verdadeiros. Porque ao terceiro arcano só se doaria se lhe aceitasse o real e o imaginário.


 

Massa-onça


Essa é uma noite que não tem pressa (tão longe daquela que vai entupindo os tímpanos). Névoa púrpura espessa, massa-onça, rastreando sorrateira a geometria da cidade. Vira cobra grande, serpente ancestral, expiro arquetípico. Malha de onça com escama de anaconda desluada. Já viu? Sei que a noite abre, a noite que não tem pressa, abre portais no vale dos poliedros. Pedras cantam saudade luminosa. Vieram também de lá, da luz longitudinal, seus minérios chorosos, saudosos do eco de tambor no endométrio descamado da montanha.


 

Mata-borrão, minotaura


Olé, olé, dita a letra-enxofre no tablado do papel-pivô. Pivete vapor na tirania do plano cartográfico de um rigor mortis. Rebanho de palavra-lenço tentando dez touros, os dedos acesos em fúria vulcânica, extraindo da cinza-mente a tensão defensiva do poema. Que venha córsego este auripigmento, para que entendam a apoteose dos damascos no tóxico autorretrato de auréola e cobra. Olé, olé, oleandra, que te percebam a flâmula flamejante, laranja flor resistindo ao arsênio letal da fumarola prosa. Que a aura ambarina de toda linha sinuosa encontre o cerne cardíaco, carnívoro & roxo, mesmo que tauromaquiada pela sucessão lírica dos coágulos umbrais.


 

Medusa lupina


Move-se esta senhora, canina, pelas labaredas de meu hábito sambenito. Parece que voa, distante de mim. Mas sei que não me faltará.

São penitentes os fogos do corpo. É sagrado o coração, marcado por cruz vermelha. A penugem ensanguentada no peito do pássaro opulento.

As avenidas são florestas. Não me enganam. Abaixo do asfalto, o barulho dos caracóis. São dela e dizem: labirinto, aurora boreal. Marionete, a ouço.

Tem outra que me conta da senhora. Tem meia-idade e olhos de lamparina recém-apagada. Enquanto alinha, pela milésima vez, a fileira de borboletas em sua coleção, me diz. Diz que a senhora, estagnada, talvez me volte toda rutilada ou nodosa. Cheia de leopHardos, por dentro e por fora, suculenta entre miados. Diz que apesar dos felinos atos, arrasta três cães vigilantes: dois ao lado da boca e um na testa. Hipocampos.

Mentalizo o cão de três cabeças na porta do inferno mitológico. Intuo sua face una sulcada pelo combustível fóssil. Uma lepidóptera no alfinete do tempo.

Não, ela não será assim, porque não fui, defendo. Reguei tudo que era delicado sob a sombra, como Agda. Com os dedos podando a ferida dos cactos. Eu cuidei do amor, ao menos uma vez. E quando copulei nas encruzilhadas foi com a fé de uma beata silenciosa. No terreiro fui outra, mas esta nunca voltará. Sei disto pela boca dos antros.

Disseram que a velhice não suporta o giro pelos ossos martirizados. Ao som de inúteis martelos não há como ser singelo. Girando seria a outra. Sonho de exu e beberagem de guru afeminado. Um asterismo de escorpionídea pelas axilas. Morrendo de cócegas. Cósmicas.


 

Menarca monarca


Falência intermitente. Falésia aquilina. Falópia avarenta. Adjetiva, oscilo pêndulo, analisando a fadiga das lunações. Os braços, um promontório com muralhas naturais, envolvendo trêmulo invólucro, tentando poupar o calor da terra ancestral. Dreno na enchente, crosta e casca, despencando pântano na plumagem da serena bacia d’água. E em ciclo cínico, de rosa e vento, sussurro ao tímpano cardeal do relevo: vermelho e casto — Ad purpuratorum patrum — sou também um velho acidente geográfico onde definha a rocha no deslizamento do mar.


 

Meu rosto


Asperge no espaço vultos em covas, ventres nos cubículos. Entraves nos relicários, as ventosas de teus dedos espículos. Trevas o que suga, cuspindo luminosos vermífugos. Nas veias, nas rugas, o néctar de elixires melífluos. Corta no ar meu movimento, como quem esquarteja víveres. Dentro dos meus dizeres vicejam teus filamentos, afiadas antíteses. Tuas mãos de fibras sanguíneas enlaçam meus dígitos. Dentro da vênula pacífica, tuas sementes de dardos assassinos me plantam mortíferos filtros. Beira uma estrofe de viva cal, silenciada por leitor maldito. Teu esporo é astro, isca. Perambula na pineal teu pênsil perispírito. Para o pólen suspenso no umbral, oscilo contigo, entre a ceifeira e a sabeísta. Olheira tão falsa, tão roxa, boca de tingida cortiça. Invoco tua flor leprosa, reproduzo a violeta tísica.


 

Meus monstros


Amo meus monstros. Cuido para não ficarem famintos, carentes ou em posições desconfortáveis durante períodos muito longos. Sentiria a mesma fome ou dor. Em dias de exímia autoanálise ou rigor hormonal os deixo dentro do armário de aquarelas abandonadas, de ponta-cabeça, amarrados pelos pés. Nesses dias uso fones de ouvido e ouço cumbia colombiana ou dark house. Se mesmo assim os ouço choramingando, deixo as janelas escancaradas, saio de casa sabendo que a chuva e o vento farão um barulho ensurdecedor, que é cantiga de ninar para as criaturas, e passeio pelo calçadão cheio de lojas de bijuterias baratas e sujeiras de gritos de carnaval, sempre falidos pela temperatura aquosa da cidade. Se encontro serpentinas ou máscaras brilhantes nas vitrines, ou nas calçadas de pedras soltas, me penalizo pelos monstrinhos e volto correndo para o lar. Enxugo os respingos da tempestade, faço chá de boldo e escrevo poemas para eles. Também deixo que os gatos os arranhem com suas patas almofadadas. Eles me perdoam, ou fingem. Agradecem o período educador de esperançoso samadhi e me mostram dóceis seus dentes domesticados de purpurina. Pacificada pela empatia monstruosa, prometo que os levarei ao trabalho e aos encontros culturais. Mas aviso: sem um pio, senão não tem presente de halloween. Amo meus monstros. Eles são livres quando lhes imponho limites existenciais. Se os deixasse sempre soltos e sem regras de condutas sociais, seriam muito eu: glitter antiecológico.


 

Mirante, magritte


Meu grito não ostenta som qualquer quando homens sem asas inventam aparatos para o movimento excêntrico de sua existência. Cavalos, bicicletas, redes. Eu, replicante petit poá na pátina perfurada da mata, tenho sapatos gastos que só me fazem escorregar na pele lisa do planeta. Quando os levito, suspensório de floresta, circula-me uma linfa celeste, que sei não me pertencer. Deixo pegadas perseguindo pontes em poesias de passeatas. E lá, em algum silêncio bruto de sílabas universais, alguma alma errante lerá: arabesco fragilizado, rasante de corpo instantâneo na ordem do caos.


 

Moira de sedas raras


Digerindo hologramas pela clepsidra das bibliotecas. O metabolismo na curva carcomida do hábito, traças na saia autópsia da floresta. Disfarçada flor radioativa, tracejando pétalas pelas veias da celulose. Caem ovos do leque: lágrimas de asas claras. O abdômen da montanha afunda a nuvem de gafanhotos, no ápice da delicadeza. Na cópula dos astros, a mãe engole o que o universo vomitou. Moira de sedas raras. Os filhos a cobrem com o manto de um deus morto. A íris de minerva soma aleluias, libélulas e azaleias, barata trilha na tontura das térmitas, até fitar o fermento nos olhos do parasita divino.


 

Moira mínima


Acham que apenas tricoto enquanto assisto os debates políticos? Sim. Minhas agulhas são longas e finas como as pernas de uma viúva-negra. Citoyennes tricoteuses. Enquanto as sessões se desenrolam nos salões de pisos decorados, deslizo minhas meias de lã pelo teto, onde os luzeiros pendem como frutas encardidas. Permaneço silenciosa, pois dialogo no cio do ano 1793, com a premonição da guilhotina no rastro de minha palavra seca. Os pés estão aquecidos, preparados para a hereditariedade dos solos e das geladas minas de gemas orgânicas. Sei que dirão em bordéis e laboratórios toda trama que escondo na planta do corpo. Dentro de redomas e lanternas, a cria de barro que pensam me dominar, como uma lâmpada de gênio domado, passeia a língua felina pelos buracos e protuberâncias do século iluminado. A idade das trevas amplia o paladar, divorciando o homúnculo da mansa escravidão. Serão resgatados meus naufrágios têxteis articulados, com iscas de cabeças boiando no mar revolto dos navios negreiros. Há um oceano bordado de crânios no cuspe projetado de minhas pontas finas de cientista. Dedos de seringa forjando preliminares sensuais. Pensam que sou afeita ao prazer, criada para aquecer e ninar e contentar-me com a cadeira de balanço de uma avó, domesticada por álbuns de fotografias amareladas, sem a certidão dos natimortos. Mas sondo o trono de uma papisa presa no baralho de um hermafrodita medieval, com a imponência ameaçadora do eletrochoque. Tenho o modelo de um hábito escarlate em meu croqui de estilista. Ela o vestirá, como se veste uma tempestade elétrica. Acham que apenas tricoto enquanto assisto os debates políticos? Sim. Quando entortam os cotovelos, meus ossos escrevem o desfecho das cruzadas sobre o esterno protetor. Minha câmara mortuária está repleta de ressurreições galvanizadas. Ponto cruz, ponto cardeal, patchwork de ebulição. Ponto.


 

Moira mórula


Não adiantou a tentativa servil do destino em esconder a agulha da roca encantada, sugerindo a fábula como se castigo. Não atrasou a libertadora ruptura na rebentação da cerzidura cardíaca, nativa noturna que é e sempre será. Estalaram-se os dedos e suas falanges de odisseias reinventadas em estaleiros atracados, em naves carregadas de especiarias selvagens, e manusearam sem medo as nascentes e as marés celestes. Seus braços abertos na saudação das águas, lágrimas e miasmas de astros solares ou sombrios, reproduziram a pose de oração do mantis, a quelícera do aracnídeo e o pedido geométrico do vitruviano, tocando o céu e o inferno com a mesma percussão. Tesouras de si, em mímica de atropos, suas frases interromperam clotos e lakesis, sussurrando para suas gêmeas percepções: eu corto teu fio da vida para que a morte não te encontre atrofiada pela saliva anestesiada dos séculos. Eu corto teu longo cabelo cansado de estéticas obrigatórias. Eu corto tuas unhas de cutículas mutiladas por máscaras tóxicas. Eu corto teu falo plagiador na teia do endométrio. Eu corto tua língua agressiva na defesa dos frágeis novelos. Não precisará de fio nenhum que ate tuas passeatas a qualquer conduta tão opressiva quanto a do opressor. Eu corto teu fio que paralisa a roda da fortuna, para que as estações de tuas emoções se desenvolvam puras como o indumentário do calendário pagão. Eu te corto para que te fie e te sonhe e te crie como criatura e criador, em cúpula e cópula, na música e no mito da menstruação do narrador.


 

Morcega


O que faço no universo além de ostentar, em fado e medo, os imensos olhos do morcego? Nada. E esse é o meu poderoso enredo.


 

Mudra


Entra setembro: este imenso quadro negro. E nem se sabe de qual equinócio a lua cara dos luminosos vai jorrar seu cio de lantejoulas. Que se preconizem a isquemia de raios nesta ausência de cor, ou excesso. É da vanguarda plástica de uma concha o estratagema em que mergulhas os dentes, com tímpanos em exaltações. Pensas que sereias cantam sobre as rochas? Engodo de escamas! Murex no reflexo oleoso, um fardo de luz que assume o olho da estrada. Se não percebes os folguedos inaudíveis pela sonoplastia que trinca a leitura disforme, nem as melusinas te pertencerão, em escárnio e interrogação. Indicar-te-ia um lamento azul, mas te seria álibi imunodeficiente. Um ofuscamento de delírios é tudo que não se pode torturar. Pergunta aos pássaros que bebem a chuva, por estreitos poleiros. São peixes. E grotescos.


 

Mulher-águia


Regressar ao útero terreno. Absolver as metamorfoses descartadas. Dar à sombra o naipe da medusa, da sereia e da fêmea — feitas rés pela fatalidade dos baralhos rasos, equivocados pela lança régia das esfomeadas dinastias. Meu reino por um cavalo marinho. Meu cetro por uma pena de harpia. Meu corpo, dito monstruoso, refeito gênese sagrada no feitiço da luz. Escama, fio e sangue: imaculados.

Renascer a esfinge abortada, imune às traduções do desespero. Meu seio na cópula do ocaso magnético. Meu sexo no zênite das cúpulas vegetais. Minha letra, o cinto mágico na castidade das constelações.


 

Mundana


Spica, estrela-trator. Sulca a pele das noites e a face nova dos filhos terrestres.

Pelas rugas notará quem adormece, conscientemente saciado, após o árduo trabalho concluído.

A binária coroa seus genes espalhados com a tatuagem das romarias.

Sou um campo aberto para seus dentes estelares, suas pinças. Sou seu tegumento, sua aquarela, seu sudário.


Enquanto Arcturus me lança ao cosmos de ninguém, agressivamente magnético, as espigas douram os campos com suas cabeleiras radiofônicas.


Não há trabalho sem força.

Não há execução sem o coração ressonante do escorpião.

Existe o leão e a mão sobre seu rugido plástico.

A mobilidade das colheitas não cresce entre docilidades doentias.

A placenta deve atirar-se ao oposto do cordão prateado, do nó dos mundos. Para que o rosto de um espaço ocupe o tempo que lhe cabe.


Os mapas são rebentos. Todo corpo nascido é uma heresia militar — forte — avante!

Não há continência para a miséria de não crescer, até dizer: o estado sou eu.

É dócil e sadia a afirmação aos mumificadores.


O apego piramidal é um flerte precioso.

Mas a duna sabe mais, ela migra sobre as tempestades com seus espinhos eólicos até que surja o monopólio de sua fartura cristalina sobre o túmulo dos nomes.


 

Música sobre abismo


Ainda consigo olhar sem repulsa para estas faces do paraíso. O sentido do terrível sempre antecede a percepção da beleza surpreendente. Uma pureza difícil de soletrar. Elas sempre vieram com vozes assustadoras, desde a época da intuição prematura. Como uma trilha sonora fantástica. Audíveis o tempo todo. Terríveis, terríveis. Nunca me enganaram. E dentro de outras vozes eu as posso sentir. Dentro de sua voz, eu as posso sentir. Por mais que as oculte em sua extrema docilidade conquistada. Um terreno que repudia meus passos terríveis, os mais puros. Seu paraíso me expulsa.

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