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Foto do escritorGavita

Neônia - Letra O


O caminho da graça


Moça mártir voltaica. A coroa de fios desencapados. O ventre exposto aos pardais. Decibéis de íbis na sinfonia das vielas. Emerge do espelho, ancora no elevador. O dia de nosso pão é uma ponte séssil gigantesca. Cobre bueiro a bueiro, o manto esfarrapado de etiquetas. Devora cápsulas coloridas, sondas espaciais. Suspende a cruz, o cordão umbilical. Recolhe a moeda. Ruma, ave, maria de um desconhecido sistema solar. Ruma, menina, surda rosa no sermão dos comerciais. O caminho sinuoso para o céu entorpecente estará aberto às esquinas, no próximo piscar esverdeado do farol. Milhas e milhas de si. Avante, a anunciação. Longe, muito longe do castigo perpétuo nos joelhos.


 

O espelho preto


A sós, no pântano. Como a hipnose na convulsão da perna de uma rã morta. Rastejando a sinfonia dos sulcos, meninges, mananciais. Equiparando-se a cólera divina que nutre com imagens ácidas as bibliotecas dos homens. As letras do âmbar, os abortos de sistemas planetários e o magnetismo das pedras. Além do ponto escuro em que se doma, pirografando nos pulsos de azeviche, o naipe de abraxás (pois sempre é manhã desperta pelo canto do galo iridescente), há uma cidadela de holofotes: a reunião de leões pela savana. Delineiam uma estrábica colmeia na pele das hienas esfomeadas. Lux-citânia. Projectio, projectio. O desfile forense do escaravelho na língua hermética. Treina a ação de se estender para frente, com a mímica dos campos elétricos. Trabalha contra a ideia de identidade: o coração gangrenado por renda burlesca. A carne afeita aos guinchos de pulsares, tarântula neurológica com veludo dourado de hipérboles. Ereto, solar: a esgrima de seus olhos há de decepar a curva marmórea da alucinação dos dias impotentes. O coração? Vapor de onda eletromagnética. O demônio dos simbolistas. Autorretrato. Quebre.


 

O espírito da colmeia


Era uma sala chumbo com tapete líquido, sobre o qual sustentava-se uma mesa de vidro abraçada por uma mulher extasiada. Suplício ou beatificação elétrica? Não se poderia decifrar. Uma criança corria ao redor dos pés na água. As patas de madeira e as veias de harpia no tornozelo giravam hipnóticas aos olhos fabulosos. Desta maneira copulavam em cinematografias para ciclopes. A criança que nunca fui, cleptomaníaca e sulfurosa, arrastava e levitava cantos de colmeia pelo aposento ferido, como se empunhasse um crucifixo oleoso pela atmosfera dos círculos infernais ou espetasse alfinetes em louva-deuses e cogumelos pagãos. Não se diferenciavam, mas tinham asas arcaicamente costuradas ao coração. Representava seu balé de naipes, imune e ofegante, como quem volta do mundo dos mortos com um segredo indecifrável, mas sensorial. E o amor dele no centro pingente do teto, silencioso como uma âncora em câmera lenta, oscilando o corpo escarificado dos corais. Com a sensação pacífica de um caos que nunca presenciaríamos, enquanto a luz permanecesse siamesa e tétrica no filamento helicoidal. A coluna, a língua, a serpente e a quimera, com olhos de vidro: nosso fio condutor. E nossa casa comburente no solo da noite, assolando a face dos mapas, como nem mesmo a lua faz.


 

O estado sou eu


Sou a profecia de uma rosa mascarada para o tímpano dos pequenos príncipes que viajam perseguindo ecos poderosos.

Na paisagem interna uma caverna marinha alvejada por arpões de caçadores de mitos.

O fantasma bailarino liberto na fúria gloriosa da manhã.

A blasfêmia pura dos dedos no botão perolado de um espartilho invisível.

O ofício sagrado e meticuloso da mão na fila interminável das contas de um rosário.

A caravana das formigas desalinhadas pelo abalo de um passageiro inesperado.

O pólen aventureiro que retira a abelha do útero aquecido da colmeia.

A febre branca sugerida, o vício de veludo azul induzido.

Contaminando-se obsessivamente com a própria compreensão sísmica a cada explosão de estrela no cálice de um licor dourado. Em eterna confraternização.

Para constantemente curar-se de mim.

Agonizando na mutação lunar dos hexagramas.

Sem memória persistente.

Sem hino de recordação.

Somente a heráldica de pétalas amargas mastigadas.

Sem tocar nas flores doces de uma tarde aos pés da aparição de Salette.

Ribomba melhor o tanino no sangue, tônico e tântrico.

Meu corpo mirrado de fada de contos expressionistas.

Minha mente gigantesca de duende prestidigitador.

É o que nunca esquecerás.

Eu, que a tudo esqueço.

Minha liberdade é feita de adeus. O passado não me consome.

Meu futuro me condena. Eterno soberano.

Que rosto desconhecido estará estampado, como um brasão, na vidraça acolhedora do leito de meus últimos vestígios de existência?

Será você, presente, redoma, imperador solar, na infinita cidade do amanhã?


 

O estômago de Madame Bovary cospe tinta


Estouro. Início. Netuno ruminava, leucêmico. A paisagem ecoava pelo vale ótico: “Emma Bovary sou eu”, provocando tremores involuntários na musculatura da olheira esquerda, arroxeada como uma campina de foxgloves.

Era uma praia enegrecida, muito mais sépia que o fenômeno senil das fotografias que trazia costuradas ao bolso. Cintilando na sinistra euforia da fábula.

As películas, cabras montanhesas, faziam o papel de arma-de-cuspe-branco e só seriam descarregadas quando o negror fosse indicativo do ato urgente de descobrir o olho menos destro, permanentemente coberto durante os dias, para o treino da visão noturna. Viesse esta atmosfera de jazida, ao menos uma íris não se traumatizaria de cegueira, abruptamente submetida ao corte dramaturgo da luz. Abrir-se-ia como um girassol ameaçado de dúvida tautogramática. E daria o disparo fatal nesta paisagem adúltera, que o obrigava a sair de si e perder-se pelos desfiladeiros sonoros dos algos todos que lhe questionavam o nome. Estes algos príncipes maquiavélicos, despertadores psicopatas de suas adormecidas certezas. Sibilam, silabam! Sílaba de sílex e bile!

Emma, terei de estourar-te os tímpanos. Tu te curvarás pela eloquência do nanquim dilatado. Amplificarei a palavra nascida no mito do carvão, que clareia os dentes indígenas e expõe a medula dos piromaníacos.

Antracito é uma das palavras que te devolverei. E mais outras, de betumem e aguarrás em cópula, para o estopim em teus miolos estomacais, corroídos quando declama em cena de trapo esta oração desesperada: “Emma Bovary c’est moi”.

Arremedo-te como a criança lunática imitando o galo solar de ABRAXAS. Cala-te Emma! Deixa-me sentenciar o que trago no compartimento secreto das vestimentas, a relíquia imagética feita para este teu momento defensivo. A polaroide que libero, escandalosa como uma ereção tectônica, diz:

“A tentação de Santo Antônio sou eu”.

E agora Emma? Persistirás com o realismo rigoroso dos romances? Runa rendida ruborizada. Há mais de um século atordoada! Tinhosa! E se te dou cabo da vida, é por precisar sobreviver. Sobreviver de paisagem silenciosa, de símbolo, de verbo e de único e alquímico amor.

Mãe medieval, com placenta de Bette Davis, sou teu órfão azul.

Estouro. Fim.

Lembro de Emma recolocando o tapa-olho de veludo acinzentado ao retirar-se, feto de flâmula, do campo visual. Musa deslocada em tribunal, viúva de minha visão. Reencontrei-a anos depois. Um livro digerido no estômago acrílico de um robô.


 

O êxtase do santo leitor


Queria que me interpretassem demônio esfuziante. Por que me caio e me sinto belo, muito bonito em minha periculosidade efêmera, quando leio os poemas todos de vós. Digo vós por se tratar de uma segunda pessoa, como eu convosco, em medievalidade ritualística. Fico apaixonado por mim quando vos leio. Depois passa. Como o desejo da moça ex-violinista que só queria o violino para umas erudições clássicas. Depois que foi por um dia o corpo de estradivário, extraindo de suas cordas neurológicas a música que a esticava em escalas estilhaçadas, passou. O desejo findo. Então o espelho, sem pronomes retos. Assim o faço. Após ser belo pela música escrita de vossa alma, recolho-me ao fragmento cortante e luminoso do eu, sem som nenhum, expulsa do vosso paraíso que ousei rastrear. Recolho-me e me diriam anjo calado, pois ao longe pareço dormir, perpétuo como estátua que vela féretros. Então me interpreto. Corrompido pela vossa contemporaneidade. E só há o desejo demoníaco de que me interpretassem dodecafônico pergaminho. Mesmo que a beleza seja inexistente em sua heresia de pulsões. Pois o espelho veio depois da leitura da gravidade. A redação massificante da queda de uma maçã, no jardim de vós, físicos e apaixonados. Sois arcanjos modernos e espalhafatosos, um êxtase para escultor.


 

Oftalmia


Olhos de serpentes não brilham no escuro. Uma árvore de acácia no deserto sinaliza a água fóssil armazenada nos esconderijos de arenito. Durante a lavagem, quiabos que espetam as mãos não são bons para o consumo. Foi encontrado um corpo sem vida no lago do passeio público. Colagens são tsunamis provocados pelo esvoaçar de borboletas insignificantes. Olhos de felinos brilham no escuro.


 

O grande colisor


Abro o sol e fecho o corpo, com a noite retida nas têmporas. Forjo milhões de retratos claros, para meu vestido de espelhos pirotécnicos: disfarce da noite véspera onde enterrei uma alma. Com cicuta, com astúcia, com granizo. Na carótida de Chagall. O riso demolidor dos trovões no fogo dos dedos. Misturando fusos horários, fusos cósmicos. Na polifonia dos quadros. Mais um instantâneo na galeria com que me adorno. Os passantes partem-se em reflexos dourados quando uso trajes brancos. São atraídos pela luminosidade. Quem deles retratarei desta vez? É da fosforescência dos homens a minha coleção. Vitrine da memória.

O campo lexical dos temporais conta sobre arte de ser anjo: o livre-arbítrio para escolher um alvo, em terror e inocente encanto. Tanto o anjo quanto o raio são exemplares calígrafos de versos para a eterna, porém sujeita às intempéries, arte da inscrição tumular.


 

O hábito escarlate


O grito expresso no interior mudo do bizarro verso: era assim que me ouvia o amante maior de todos os silêncios. Eu nunca o via realmente. O hábito me cobria a pele com a cegueira dos gatos dentro do sol. O mistério era perturbador. Continua magnético como um gerânio sangrento na revelação das horas obsessivas. Fecho o olho e ainda o vejo, encarnado. Fecha o tímpano e ainda me oferta flores, tigradas e emudecidas.


 

O julgamento


Fala desespero, sobre o mistério dos anjos: quando sua cantoria se torna uma constante palpável no meio dos rumores, um grande perigo ronda. Anjos são como alertas. As portas do paraíso estão cerradas para todo o sempre. A função angelical é fazer-nos entender que temos de buscar paraísos aqui mesmo, na terra fecunda. Quando se manifestam como acrobatas pelo ar, indicam que estamos nos distanciando daquilo que nos dará nosso milagre particular. Não tenho outra explicação harmoniosa por hora. Porque os ouvi, e meu coração está perdido, ondulando dolorosamente em meio a vinganças que deveriam ser concedidas a outros corações. Só há outra suposição que poderia destituir a verdade desta constatação: a de que existem seres sentenciados a apenas ouvirem milagres, como são as vozes dos serafins, mas que não podem participar dos mesmos. Toda vingança estaria justificada, desta forma. E a ideia do paraíso celestial estaria salva, bem como a benção dos alados. Movendo-se ao encontro do móvel empoeirado, despe a puída capa negra, aninhando-a junto aos pés feridos. Suspende um pequeno esqueleto calcário. Aproximando-o do tímpano. Para ouvir, mais uma vez, a sentença. Em acordes milagrosos de madrepérola. E deixa a cena.


 

O manso de sandálias vermelhas


Cruzaria com teu corpo aberto o campo de flechas por mim? Ou ficarás guardado a sete chaves, relicário, com teu banquete de peixes cruzados no silêncio das portas? Cordeiro cordata. Vertendo teu sangue pacífico sobre as hordas esfomeadas. O corpo fechado para todas as batalhas. Não me traga hóstias. Preciso de uma armadura metálica. Fechada. Para a explosão de teu sol, coração quente, face de pai. Para que meu corpo perfurado não se crive de fogo doloroso no forno abafado de uma imponente catedral. Para que a câmara de gás não me faça perder a hora dos inocentes. Para que os pictóricos corpos nas rochas sedimentares se animem como uma aquecida história de Lumière. Para que a fome não me converta em assassino perpétuo de tua semelhança. Para que o mundo seja a marcha da nobre escolta no útero da imensidão inóspita. Ensinaste a guerra. Teus pés vermelhos na marcha dos mansos. Cruzo meu corpo aberto no campo de flechas, por ti. Meus pés sangrados no horto das estrelas, algibeiras. Lobo de tua via, láctea.


 

Omulua


Abraxas acende meu nome dentro do relógio de água. Uma moça de palha acorda no redemoinho pirotécnico das horas. O tempo da cabeça de fósforo não alcança minha combustão. Ave da terra, ínfima megera. No agosto de um verbete extinto de deus.


 

O órfão azul


I


Talvez o selvagem dentro dele fosse a Oceania, rebento de águas perigosas. Batizado pelo fogo das dores alagadas. Um mundo nascido às pressas, como o fórceps da estação cronometra, por dentro dos ramos ainda frágeis. Vindo à tona quando a atmosfera é uma vaga ideia, alienígena dolorosa. Inóspito como um morto e sua seiva aberta ao retorno do solo: este ponto cego dos funerais que todos olham e desviam. Maquiado pela esperança de ressurreição. Mas não há o vapor da gólgota nem o óleo de Lázaro nos pés congelados. Existem flores hipnóticas e pódios na cadeia alimentar. E o passo desconhecido que é sempre um rosto território, que nos assombra. Impossível de placidez na escuridão de um leito, sem o calor de uma mãe, sem o pulso de algo móvel e iluminado. E o selvagem de dentro dele tinha olhos assustadores, como os bichos imaginários das crianças. O riso de sua boca surtia o efeito do apito de um recreio suspenso. O bicho fera despontava azul, antes do corpo flagelado: inapto para o frio dos mundos. Assombrava o medo do civilizado, nos outros.


II


O PEQUENO CÁRCERE doía no reflexo das vértebras. Ainda dói esta porta mental arrombada. Não é mais um quarto vazio: é um feto que atravessa os meses. E sei que logo virá. Temo sua selvageria desprotegida. Temo que se tombe pelos edifícios. Como uma onça em flagrante na arquitetura das lajes, no vidro redoma sobre a floresta. Um cetáceo em extinção na mira de um pesqueiro de fenômenos exóticos. A voz dos anjos que guiam o nascimento é terrível: criva de moral o céu morno escancarado do meu prisioneiro, analfabeto para a lei dos homens religiosos. Uiva o cio de uma matilha sobrevivente em fuga, aos pés de mamutes iridescentes. E os civilizados são gigantescos esqueletos com espinhos no nome. Pela cola das rótulas rangem a artrite dos desajustados. A amálgama que torna o espanto infantil uma pandemia no museu das eras. Porque toda lembrança é projeto de taxonomia: um natimorto rotulado. No pranto selvagem do mundo. Por dentro das águas vivas. Ermitão.


III


Prece precipício, em postura laboral, para silenciar o enrijecimento da nuca. Dê-me pequena criança no espelho, um trago, um incenso e uma vela. Para extinguir este selvagem que esqueceu suas origens. Para sufocar este descrente de tocaia em mim. Gárgula na sangria de meus olhos, úmidos de palavras inexpressivas. Que não se podem dizer. Derretem aos sopros de prometeu. Não há fígados nutritivos na brisa aguda. Por dentro das janelas lembram aquários e tocas abandonadas. Cavernas soterradas. A cinza de pompeia sobre o pensamento dos homens. Incontidos em si no cancro das hordas. Na crista das avalanches das línguas irascíveis. O cardume de catedrais bate na enseada. Como dentes de tubarão. Nocivos contra o mar das planícies livres. Ameaça a fumaça labiríntica da boca dos ícones quentes das aldeias simples. O pé de icosaedro escarlate, que diria coração bestial, na casa de carnes improváveis. Impulsionando o corte preciso dos açougues. Abertos como institutos proibidos aos meninos esfomeados. Que as casas santas esquecem do lado de fora. Quando é muito o frio e quando é morte a fome. Azul no deserto.


 

O outro paciente inglês


Ah, prosa fatídica! Permita-me hipérboles, interjeições nada rotineiras. Meu córtex se afunila no jorro daquelas pedrarias. Pois na clínica médica (particular) detive-me, pausadamente, em todas as texturas. Paredes com relevos de cara mica, a porosidade rústica de um maníaco jogo de xadrez, como os círculos dos olhos de rapinas. Eram cinzas fúnebres, esguios e bem-educados na parede, mirando o chão com seus brancos e pretos de mármore catedrático. Bailávamos geométricos pela arquitetura de um aficionado por elipses medianas. Toquei todos os poros decorativos, sem medo de que me sugassem para alguma percepção de cuco domado. Rotineiramente caminho por corredores hospitalares, mas onde minha vida se desenrola pelo pão não ouso nenhum toque que não seja o de um midas ilusionista: abro e fecho torneiras e portas com os cotovelos. Sem a assepsia a que me submeto, para evitar contaminações físicas e psíquicas, mirei aqueles azulados painéis, com os dedos livres. Deveria ser assim, sempre. Mas não o é. Somente em ambientes onde a moeda caminha com uniforme zelador, pode-se respirar pacientemente, sem o rótulo paciente de algum sistema único de saúde, precário e entupido, onde os papeis são infinitos e nunca caberiam em um teatro que não fosse o da crueldade frigorífica, benfazeja, mas enrijecedora. (sem corretores ortográficos nem funerários).

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