Ravena em rugido de rubis
Procurando equilíbrio entre a pata de leopardo e a pata de corvo, descobre a constituição dos pés — falanges que se projetam pela faringe — tranca-rua das línguas, trava-rosa no politeísmo dos dentes. A ventania virulenta a enche de arabescos. E a olha, dizendo chuva entre estrias de nuvens mastigadas. Tropeça e repete seus antiquários — salas, rostos e pássaros. Atentando ao pudor das expressões, balbucia um vibrião de vírgula na verborragia da vitória-régia. Não será rainha na balança do zodíaco, embora estrela de água no reflexo da lua. Rosácea, a pegada de crateras. Pelo e pena na pele do lago de papiros. Leocorvo na corcova. Manca de mandíbulas musicais, vicia-se pelos vincos vulcânicos das consoantes. Rasante, a regra no papel pólen. Respira e rasga.
Reflexa
Reflexa. Danço, danço em tenda tátil. Sólida tenaz, sublimando a sorte e o azar. Canto, canto ao sátiro e à sibila, ao inquisidor e à freira. Sôfrega certeira, a verdade e a mentira. Atuo, atuo em palco doentio. Mascarada trapaceira, tropeçando no atrativo e no hostil. Compadeço, amorteço no castanho brilho. No combate febril mortifico em dourado e anil. A garra escandalizada no bizarro cantil. A falha aceita na própria teia. Ser retrátil, alma de jade. Rasteira réptil, covarde. Solubilizo dentro da dor. Coagulo em amargor. Qual é a face que me congela a autocontemplação? Volúvel válvula em transmigração. A rima ridícula, a cara cínica extinta. Ave ereta, pesca estética. Cobra víscera, hamadríade deserta.
Reflexa.
Retrato de balística
Há uma árvore muito fina no colo das pérolas.
O fruto magmático afluente pelas especiarias radioativas.
(opalina, a corda marinha no tímpano)
(tão longe do oceano o navio-pai da memória)
(pisoteio no ponto propulsor. ébano e neblina. seriam centauros, as bestas na ebulição de minhas cordas vocais fasciculadas. mas são flechas na duna vaporosa. ativando faces em camafeus.)
Aquela moça no intrincado lunar murmurando água cantante para a histeria do espelho.
Eflúvio de som, os testes nucleares cintilam a geologia dos eunucos cinéticos.
A moça tem escravos musicais. É um antiquário seu gesto de pendurar a coleção de conchas pelas orelhas sangradas. Explosivos dispersam os pingentes de seu colar. A coleira nos escombros da radiação perfura os olhos dos pássaros. Castrados, cantam mais apurados para a escória do mar cintilante.
Dentro das ostras, proclama-se o mistério:
Ela abre o porta-joias. Ele lustra, pela milésima vez, a caixa de projéteis.
Há uma árvore muito fina no colo das pérolas.
A herança da guerra, a biografia.
(estudo o movimento de corpos lançados ao ar livre)
Retrato de manoel, o submarino
Catedral submersa, onde todas as orações começam. Placenta de uma mãe-redoma. Sinos na boca afogada dos naufragados. Ossos dissolvidos na prole psíquica de netuno. Mártir do mar. Anêmonas trituradas no plasma dos aquíferos, onde nascemos e partimos. E navega tu, navio-pai de minha memória.
Ouija, ouija:
Acha esta água viva e te pregas nesta cruz líquida com a simetria das quatro bestas do apocalipse. imitatio christi. Arca de evoé. Urna da aliança, teu corpo de braços abertos. Nevrálgico colosso no mastro da religião que os rebeldes velejam.
Assim vieste, no jogo de copos, metal pronunciado:
Avô pescador. Dedos esclerosados, tecendo pela casa, redes e mais redes de náilon e incapacidade. Peixes invisíveis. Ombros de aquário. Flácidos. Cantando músicas inteligíveis. Eu implorava sua morte bálsamo sobre os cadafalsos. Nunca mais os marulhos de golfinhos e o som das baleias pela aresta de meu quarto roubado.
Arde o plâncton luminoso desta lembrança.
Eu pesava sobre sua morte como um cargueiro atolado de manchas negras e âncoras alucinadas. Terror da imaginação, o esquife decorado. Eu rondava sobre sua cantoria necrosada como um inseto carnívoro nas espáduas em decomposição. Depositava flores roxas e perfumadas sobre sua musculatura sã deteriorada. Sua existência persistente me doía como a invasão de uma expedição aventureira nos territórios selvagens. No nódulo de sua ressurreição: uma absolvição. Caveira, caveira, meu corvo de pestanas impacientes. Sangue de meu sangue. Morto és. Vivo és. Como uma sanguessuga no pântano de minha lamentação. Sua boca carcaça me gritando pela casa: fecha estes olhos, grandes demais, farol perdido. E tu, onde estás? Carga-tonelada de cinza e pó. No pesqueiro de uma nevasca lírica. Olho-te, pequeno demais, agora. Tua carne sempre me foi um pão amoroso. Imensa paisagem, incansável de sondar. Navego-te. Afunda-me e serei liberta. Peixe. Peixe. Três vezes peixe. Podes agora, pescar? Rasguei o endereço de teu epitáfio aguapé, mestre das águas, meu batistério misterioso. Está entre nós, teu nome. Síncope, ciclope, simultâneo na bagagem perdida das células.
Lembro-te nas sirenes. Adeus.
Ritmos sálmicos, o canto do poético interno.
Meu inferno é outro. Sepulcro na veia das fomes. Não ruge no abandono. Ativo, se me exortas. Quem já o chamou por este nome? Régio, litúrgico, vestido com a dinâmica do cosmos. Em salmos, escrito: na cruz e na porta. Fendido, no sóbrio e na prece, dos fogos.
Robótica
Nada de poesia, nada de prosa. Fartei-me de supercílios sobre a academia de meu sonambulismo. Por Nuit, que confesso.
O robô, com sua ópera cibernética na hora do arroto político que acompanha o hino nacional, ordenou-me a escrever floemas e hecatombes, verbo psicoativo, narco-beletrismo e verso cancro de sílex. Aproveito seus ganchos de elétrica epilepsia.
Cresci com a sessão da tarde entupindo de luz preta e branca o globo ocular. Óbvio e ambulantemente que preferia o capitão metálico ao garoto meloso que insistia o berço, com sua careta mimada de urso carinhoso. Por isto, não tolero dicionários de novela, parágrafos de rodoviária, narrativas de bem-me-quer e a naftalina de clássicos com seu estrondoso bang-bang.
Creia-me, por Nuit que confesso.
Cibercondríaca, neste mar de caracteres ao acaso, miro a constelação da Ursa, sem aquele abraço gelado, logicamente. E rumo, ao infinito e além, espalhando robótica sobre os abismos onde me deixo ler. Não sou haicai, sou HQ.
“Confesse, confesse bruxa!”
Perdoem-me os ultraleves de coração, mas não tenho paz interior, e sim palavras de balas perdidas. Não sei adormecer como deveria, com a fibrose das usinas nucleares entorpecendo as janelas indiscretas dos nossos perfis. Mas nem Mickey Mouse poderá me traduzir.
E a ti, que indagas quais ventos levaram meus rococós e toda aquela paramentação textual de caso pensado, adianto que a gata comeu o código-morse de meu moleskine, embora ainda caminhe sobre o orvalho de uma guerra criada por um camaleão dentro de uma caixa de abelhas.
Toda palavra me fere com a possibilidade de sua sociedade digital.
Rosarium
Fardada por pintas, testava a coragem pelas jornadas psíquicas, desafiando o mármore hierárquico das salas mentais. Depois que o conhecera, atravessava os aposentos bizarros com um copo quebrado: a flecha brilhante nas mãos, o dardo leopardo nas unhas. E via rosas ameaçando o balé congelado do ar, dispostas como cascatas tintas entre os divãs interiores. Sóis vermelhos que despontavam como os olhos de fogo no meio da testa dele, aquela planície ostensiva de girassóis. E não precisava do conforto do tecido castanho do banco de réus, nem se paralisava com a aparição de seu reflexo pintado na atmosfera dos espelhos. Rugia para alguma janela aberta: da noite do corpo para a noite de fora. Por onde surgia o sol vestido com a pele dourada da presença dele. E do vinho para a rosa, e do rubi para o citrino solar. Da fuga interna para o planetário, da pérola cardíaca para o celeste pulsante do quasar. E saía do claustro para o vasto enluarado. Do centro para a galáxia, da massa para o quantum. Projeção de estrela no raio, desmaio, colisão. Porque depois de beber o intercâmbio daquela aura de água marinha no vermelho do poente, caminhava-se sem pressa até o perceber em algum canto escuro seu, e então dava a si mesma a luz, peregrina e casta, como uma divindade mitológica respirada da pedra amorfa. Do carvão ao cenário do cosmos. E era assim como a forma do satélite no assédio do astro. Do labirinto de palha para a partilha da mecânica suicida das esferas.
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