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Foto do escritorGavita

Neônia - Letra S


S. nigra


Um espelho espreme todos os rostos que refletiu. Sabemos que, no fundo, bem fundo, deste vitral domesticado, os rostos são todos fulgores de S. nigra: substância arbórea na rede da obscuridade. Vegetam, pagãos e perdidos, no batismo de um templo cujo altar oscila sob a pressão da pata de múltiplos versos, zoomorfos e enclausurados. Ao apertar o fruto destas árvores, Senhor e Senhora Nigra, escorre um suco de cor vermelho-sangue, sépia quando seco. Eu, que destilo chuvas, tal dândi afetado pela falência do sol, sei que quando chove, me espremo e me decoro com hábitos embaraçados — ternos, pingentes, poses e lombadas — procurando mirar no vidro polido da antiga cristaleira uma floresta mirrada: hóspede provisória no lago espremido entre o poente e a poeira da dopamina. Mais uma taça de nigredo, senhores reflexivos, rostos-neurônios tão meus?


 

Sabá entre sabres


O topo do crânio de um felino eleva-se na escuridão. É a montanha na qual circulo, estaca projetada, aro vertebral de fulgurante coroa. Faço-me pilar, corpo-clitóris, dente de loba na arcada diadema. Tanto circulo em lapso de tempo que de longe imaginam múltiplas colunas-entidades. O desmembramento é a ritualística compreensível. Simulo a aura esquartejada, o teatro da carnificina. Mergulho no caldeirão, fosso-útero da bruxaria. O corpo dissolvido na substância noturna, óvulo e folículo em estado de rubedo. Retorno ao topo do crânio do gato com um enxerto de osso secreto, quase guizo, esturro de jaguar. Fui banquete e voltei alimentada. A lua, máscara de abutre, fende a pirâmide da mão totêmica — dos cinco dedos cria um casco bifurcado ou uma mandíbula de réptil. Reconfigurada, retorno, em olíbano, gosma e alabastro. A visão longuíssima não uiva para a lamparina fulgurante. A visão estendida entende a anunciada claridade como horário propício para despertar o restante da alcateia, da colmeia, do panapaná. São miríades de bichos no rugido do templo altíssimo. Profiro e escuto. É a hora venéfica, sable e argentum na heráldica velha dos observatórios. E um bode prateado retorce a fêmea fuligem, a neblina sonífera que desce sobre a caligrafia seminal.


 

Sanguínea inquisição


Fiz-me plâncton em casa de urticárias. Quatro ganchos a esticar a pleura. Bandeira hasteada, onde se lê o amor: ferimento de guerra, tatuagem de marinheiro. Do umbigo-poço, jorra um fluido elétrico com a forma da âncora. Pelo vulto anzol, fisga-me um ser marinho de cabelo embaraçado por oito vidas. Angustiada omoplata doma-me a corrida pelo ar. Bivalve enrodilhada no chacra cardíaco do tsunami. Guia-me o tapetum lucidum, felina amálgama no escuro terreno. Não há escuridão que se bifurque apagada pela sombra. Corvos em alma de alga são matilhas coléricas no sono de fogo líquido que me deixo. Cambriana, ígnea raia. Dispositivo de sinalização militar medindo a atmosfera que me fita com olhos de exército. Raios operam meus artelhos com longas pinças azuladas. Atam aos tendões, pés de pescadores desavisados. Octópode, costuro as horas mortas com tornozelos eletrocutados. As moiras enciumadas incineram-se na poça onde um sol maníaco me oculta, convertido em alimento de salmouras. Quando acordo, no epicentro de um imenso relógio pirografado ao redor do solo, os fios da aura avançam com a articulação dos ponteiros de uma rosa por ventos assombrada. Dizem-me que queimo, krakatoa. Octóforo, só, caminho. Não há como mergulhar na água viva sem arder a página dos rostos. Os retratos piromaníacos que se projetam como garças esfomeadas sobre a esteira que nos sustenta a caminhada na terra, pirateada na anatomia dos corpos celestes. São chamas altas, chamas brandas, chamas de brâmanes: a cinética violenta da existência com sua língua de dragonídeo. Hálito de magnitude eruptiva. Deixem-me tremer em plasma de caravelas. Compreendem a combustão? Resisto, santelmo. Ave sanguínea. Ave lúcida. Ave sidérea.


 

Semiótica do selfie


Desobedecer as linhas de Lineu, tornando sêmen a lágrima rosada. Cozinhar o sangue botânico da princesa junto ao orvalho colhido da penugem-pasto do unicórnio, besta máscula dos herbanários. Trocar, depois, os rótulos no armário da cozinha coletiva. Recitar um idioma de fogo inclassificável, o dos fornos primitivos, de magna resistência, na etapa da etiquetagem. Homogeneizar veneno e vacina nas fotografias dos frascos. Registrar-se rótulo de gêmula e pigmento no atestado de pureza dos vasos contaminantes. Carimbar-se elixir de fusíveis na ilusão andrógina dos minerais, em suas películas de espícula e espólio. Tentar a fórmula luz de aurora fervida na árvore genealógica, cabala materializada. Acreditar que a camada descritiva dos unguentos é goma-laca na língua do vidro, tingindo de glifos hermafroditas o artefato rarefeito. Dizer, futuramente, que o preparo da imagem nunca foi ornamental.


 

Ser da legião das cordilheiras

para a sagrada montanha de jodo


esvaziar o corpo de suas funções orgânicas, de suas artimanhas sentimentais, do que esfomeia e do que sacia, da paralisação: por mágoa ou prazer. com a beatitude despacificadora de uma desagregada artéria magmática dentro do silêncio.

e saturar as fibras desta carne, deste barro, deste leito sonoro, com o ectoplasma da cordilheira retorcida: o umbigo revolto da superfície, onde se ignoram as lamentações e os risos. eletromagnetizar o sopro com o incontido rosto do ar, este insurrecto mártir.

tocar os elétricos aromas mineralizados por sua órbita, seus cabelos de hipnose sobre a face. reconstruir a potência de uma víscera geológica, doando o invólucro vazio para pangeias adulteradas de ilhas, mapas e pontes inúteis.

tremer como a terra trêmula canta, esvaziando-se de seu corpóreo pacto: em corredeira saturada de abalo atávico. sem juízo comum. sem juízo final.

nascer um outro a cada tremor golpeado de fendas, de cascos, de lapsos sazonais.

outra carne, outro barro, outro som.

deformar o que amortece o amorfo do texto: verter himalaias, aconcáguas e pirineus, pela escrita inarticulada.

ouvir escarpas. depois: ceder.


 

Set


Vai, a quimera dorme naquele morro verde-piscina, onde mergulha os dedos esmaltados, cheios de fumaça. Estes brilhantes e estas cobras que tens tatuados na pele cantam como sinos nascentes dentro da neblina. No profundo da terra todos os versos são íntimos, e respondem os teus poemas, pois também são feitos de minerais (como os bichos e as plantas e os lanches). Minérios sidéreos: os donos das ruas todas que pisas com tua penumbra de caça e caçador. Bebe teu licor. Viaja com amigos. Comparece em todas as festas para que os coquetéis e as cornucópias reconheçam teu nome. O tempo é uma labareda embriagada no teatro dos signos. Breve. Não te esqueças. Somos filhos ávidos de vênus, a nebulosa. Apenas mais um planetinha purpurinado no abysmo do cosmos — analogia assistida. Ele te sonda e nunca te esquecerás. Não temas o anonimato, ele te espera, sabendo tudo de ti. Sorria, mesmo enquanto imaginar que não está sendo filmado. Pois assim o és, eternamente: vislumbrado.


 

Seta de cetus


hoje são 14 signos na elíptica, sabia? Hoje acordei, foram 14 horas de olhares colabados, mente solta de tapetes voadores na imensidão desconhecida. Encontrei Jung, bigode de gato, barbatana de furacão. 14 versículos me assaltaram na frieza da madrugada e não ouvia o gelo batendo na vidraça: meus olhos fechados com sopros de areia de morpheus e teu delírio com caninos dentro das bolhas de sabão. Não ouvia, tímpano encerado por moluscos pegajosos e sábios da partitura do mar, meus ouvidos vivos sem ouvir o gelo na vidraça que engole a encruzilhada do meu lar. Foi o dono das chuvas que, encantatório de ciladas, me navegou com uma frase de marulho de praia. Vi os botos cintilantes na boca dele — enseada, casa d’água, casa d’água de karl — foi para dentro dela que voei sem asa. As areias me doíam. Também tem sinos na poeira, nunca viste? Os tremores calafrios de um bardo bravio sonolento que no alto dos penhascos cortava a branca cheia lua onde tu te pariste. Eu entrei na casa d’água de lacres selados na porta de sal, porcelana, grama seca de gotículas afugentadas na bela fina xícara do teu milagroso chá, camélia de damas o jogo desenhado na beira da louça polida, que tu és metalúrgico das argilas e no disparate deste teu tão marejado, não resisto, não resisto, não resisto. 14 setas na pálpebra de budah, teu símbolo transcendental. 14 setas me invadiram com as areias de morpheus, e não via a fria nave, transpirava um calor de docas. No meu ninho pardo, vinte e oito rotas de ti e teu receituário isento de ostentações. Belo, meu guru oriental. 14 beijos te daria, na alma líquida de estradas, que tu me veio para adocicar versos, sendas, sabás, ilusões enluaradas. 14 máscaras te rasgo: tu me encanta, eu te engasgo, com areia, com gelo, com meu cansado coração. Haicai frio, leo pardo fita o lago, inverno passeia um rio. Tu, cornucópia, pavio


 

Silvícola


Silvícola, minha escada é de escamas. E me realizo, individualmente, com a pirâmide nebulo-sinuosa. O resto é selva-rio. Se fisgar um peixe, mais escamas. Se não continuo escalo-sibilando (só). Eu me pe(s)co, mulher-jiboia, moça-gavião. De cócoras no parto do mundo, colhendo algodão. Depois vaporo as nuvens, em frutos. Tenho amor pela faixa de tempestade azul petróleo na beira do horizonte. Acima, o sol. Forças antagônicas que nos dizem: humano, assista, não seríamos ameaçadores ou belos sem sua visão. Frio e calor. Pinhão na terra e gralhas-azuis no ar. Sementes que não se encerram em um fruto. Então ela diz adeus, aquarela-se em paisagem autoficcional. E o cosmos continua respirando sem que as placas tectônicas percebam. No fundo da terra as estrelas são da mesma matéria, mas o carbono é chamado de antracito. No céu é fogueira de atanor. Prefiro quasares a diamantes. E cronos é apenas um detalhe que a geologia entende bem. A geologia terrena.


 

Sinestesia da simulação


E vou escrevendo livros e mais livros dentro da cabeça. Mesmo sendo sempre cidade cinza aprisionada entre paredões de serra da mais antiga geologia, protegida da inconstância em salmoura do mar. Pássaros chegam até a janela, mesmo sendo fumaça de expediente, assalto de ignição. Cortam a vidraça em balé de algas, como se no fastio das bordas cortantes de corais altíssimos — enchem-se de luz quando a noite imita um oceano turbulento sobre a temperatura, uma gigantesca máscara furada de mil olhos, meia-arrastão de messalina divina nos portões de uma babilônia bombardeada. As aves carregam um líquido que goteja pelas acrobacias, lágrimas de territórios, suores de acasalamento em cavernas vermelhas com ninhos de líquen e barbatana. Penso em perfume contido nos tinteiros e a pena dos escribas na redação das rasantes sobre planisférios. Pela tela de proteção, os losangos de náilon revelam o bailado como visto pelos insetos, grudados que são na secreção das flores arquejantes, com a óptica dos vitrais intocados pela baforada da peste e das missas. Os pássaros e estes livros que ninguém lerá. E vou escrevendo, e os pássaros não se importam com as janelas entre escarpas massacradas de rocha artificial. Furam o silêncio do céu poluído como se dentro de telas em eterna purificação. Também fotografo, sem revelar. São garças e rapinas — as palavras e os fotogramas. Redimem qualquer narrativa terrena. Espero que nos perdoem a sinestesia da simulação.


 

Somitos


Faço orações por uma poesia ectotérmica. O propósito de uma nudez barroca, com a conjectura do mártir retratado, avessa ao gozo, avessa a dor, e por isto mesmo, os ditando à percepção. Com a confecção da alma sobre o granito, que se deforma, não para adequar o corpo, mas para revelar o sismo dos sedimentos inorgânicos/imparciais. A improbabilidade da matéria, com a temperatura dos répteis e as sobrancelhas solares, invisíveis ao meio-dia. A letra como carne, mas com o despojamento da realidade dos cinco sentidos, no usual. A carne sã, deteriorada de músculos, sem a subjetividade da ótica padronizada e com a ortopedia dos elásticos e a corredeira do plasma infeccionado. O corpo sem envoltura simbólica que o revista, já que contém como mãos, pés, faces, vísceras e interstícios, em colagem desordenada de todos os ícones. Quem compreenderá esta nudez? Sem o reconhecimento narcisístico, sem a projeção da memória instantânea. Aonde se pode dizer/escrever/projetar: espelho, com todo júbilo de sua superfície altamente refletora, mas sem que nada possa ali se refletir, sem que nenhuma carne se tombe/escorregue/grude pela prata polida. A escrita como subversão da cópula: não, nada ali poderá se reproduzir. Nada que se possa ancestralizar ou mumificar — uma carne que não encontrará paladar, tato, olfato, audição, visão. Pois o sentido é a integração, o samadhi. Oro.

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