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Foto do escritorGavita

Neônia - Letra T


Telecinéticos


Apontava-me uma espécie de estela de pedra, criada de uma rocha única e esbranquiçada. Dizia-me para notar os pés esculpidos sob a plataforma mínima do aparato ritualístico. Mas antes, fixava-me na ideia do que o artesão tentara projetar, por fora do mineral: miríades de escamas triangulares com a forma geral assumindo a composição de uma naja do deserto, enrodilhada abaixo do sol e invocando o algarismo oito. Instantes depois, que pareceram blocos de eternidade, notei que nos dois círculos sinuosos da coluna ofídica encaixavam-se perfeitamente as ossaturas dos tornozelos.

Após a associação iniciada pela busca de símbolos conhecidos dentro da memória, delineou-se a forma réptil. Se não tivesse optado pela via perceptiva associativa, teria entendido onde precisava pisar. Teria visto que os pés só não existiam na visão comum. Eles estavam plantados lá o tempo todo e não apenas imbuídos na extremidade do meu organismo, sustentando-o no abrasivo terreno da realidade consciente.


 

Testamento do fogo


cláusula um: os livros queimados emergirão na memória de quem os leu.

crianças adormecem na ficção que a mãe os entrega. quando a noite é um barco criando raízes.

quando amanhece, o ciclorama de quem ouviu uma história de deserto, para adormecer cheio de luz na escuridão dos leitos, estoura pelos cílios despertos.


fui a mãe de um órfão azul

na gestação da tempestade

e o nutri com capítulos de piras funerárias

(o que restava de meus dias exorcizados)

seu corpo celeste tenta nascer.

preciso de seu leite pelas escamas.

pois foi de meu sangue desidratado a constituição de sua musculatura carbonizada: os nervos de crânios derretendo sob a luz matinal, pela carcaça dos corvos.

meu corpo noturno precisa da via láctea.

o bebê dragão que me ouvia

espalha a silhueta de cactos altivos

na paisagem dos espantalhos

a respiração ofegante dos répteis intercala seu diálogo

contestador

a caravela enraizada está cheia de orvalho

onde as aves de fogo bebem

para manter a crosta das dunas

em perpétuo movimento

se este deserto crescer demais

não serão precisos mapas

e alucinações encobrirão a sede

tudo sucumbirá, sem a água milagrosa

degustada

e os livros que foram queimados precisam emergir na memória de quem os leu.


 

Toque das ave-marias


(lendo a psique do fogo, todas as coisas devoradas pelas chamas serão alimento)

prove este corpo de diamante


a criança de estrelas pelo campo de dedaleiras. sua inocência pisoteando o rosto verde de uma mãe. nutrindo o leite das seivas com o orvalho de uma caminhada ígnea. tudo que o fogo diz, com amor cortês. câimbra de lascas pelas espáduas de uma aldeia esquecida. zigoto de um império límpido nascido em campo de rebentações lácteas, nebulosas. soberanas de manhãs moleculares. este cristal é solidário como uma casa de espíritos. e nada mais será preciso taquigrafar, pela terceira ordem. os olhos que leem o fogo descrevem a psique de uma fome infernal redentora. psíquica majestosa.

prove este corpo de carvão


o inquilino que cobre com pele de especiarias a echarpe das senhoras católicas, prostituídas de eternidade. mortificadas no ponto carnal onde se embalam os mortos e os delírios: estes gêmeos pictóricos na memória anágua das moças com peito de ave. as leoas venéreas esqueceram os anjos da guarda e sua ressonância embrutecida de tentáculos. seus dedos gigolôs apertam a oração como uma mercadoria milagrosa. que bufassem como poemas. mas rezam em tom inaudível de vespas, para não arrebentar o tímpano dos santos ocos. e ainda as ouço, antracito. sob martelos e maçaricos. com a letra povoada de insetos.


para provar este corpo de diamante


para provar este corpo de carvão


(a salvação oscila feito o pêndulo na hora do angelus)


prove este bendito fruto


 

Tornassol


Talvez seja bendito (este poema). Pudesse chamá-lo (fiho-de-deus), sem invocar o signo no vão empoeirado dos escritos manipulados, assim o conduziria. Como “o puro”, “o ingênuo”, “o autêntico”, chamado para depositar suas pernas dobradas neste ritual para reconhecimento de paternidade.

A figura de felino ajoelhado permitir-me-ia discorrer sobre a insubmissa ciência dos faquires, quando de bom grado as figuras magras e esfomeadas (como nuvens dissidentes), genuflexionam seus joelhos aos cortes de raios elétricos, reproduzindo a queda do pai, e consequentemente, provando que o mesmo material genético percorre seus dutos e furos (com todas as aflições impostas à matéria escura).

Seria preciso que (este poema) soubesse rezar, após a postura necessária às coroações e provações. Bastardo, pagão, quem ousaria assim nomeá-lo? Após a curvatura da rótula, só exigiriam que ungisse a terra dos tolos com seus lábios aparentemente leporinos. Mas eu vos diria: não se trata de um defeito congênito, mas do castigo de um dedo-de-anjo, silenciando a memória coletiva das palavras de um recém-nascido rebelde. Este filho não se cala, mesmo quando beija o solo ou imita o mantis. Sua eloquência atravessa os deslizes do paladar e do olfato, ultrapassando-os em perfume e saliva.

O órfão azul (como seria indevidamente interpretado) poderia, com sua pele de granizo, penetrar as tectônicas intactas do diafragma desta terra árida (o coração dos homens), esta pia batismal eternamente escoada sobre a obrigação dos batismos e toda a sucessão de proles com direito real sobre a soberania das certidões. Mas toma para si os nomes do céu e veste a abóbada com os braços volatilizados.

Então, como se trata de um inominado qualquer, por que o chamo (este poema bendito)? Por que o cubro com fístulas teatrais de lázaro? Por que o curvo, pela letra, fazendo com que se junte ao meu nome (filho-de-minha-pútrida-carne)?

Porque talvez seja bendita esta nomenclatura corante. E eu o proclamo: és “o único”, “o prometido”, “o ácido”, fruto de meu ventre másculo, potente, destituído entre bispos, ducados e abecedários.

E tu, ousaria chamá-lo irmão? E depois, renunciaria?


 

Trinta e oito gramas de delírio, meu duende


Mas não há qualquer caminho sadio que passa através delas. O caráter destrutivo elimina até mesmo os sacrifícios de animais. As preces entre agulhas, a ceia dos opiáceos, a pausa na dor de existir doente quando tudo mais revigora. Tenho cefaleia pelo absoluto e pesadelos de indigestão. Quem nos julga? O criador dos parasitas? Se me reporto aos antepassados de milho indígena me deixo passar por analfabeta, como um fármaco quântico. Ruminando em laboratórios, a sabedoria ancestral volatiliza espécies que poderiam curar a evolução. Saudáveis são os que se escarificam com a vacina da noite, enquanto sondam as estrelas pelas agulhas dos telescópios, respeitando a época da colheita e a seiva beletrista das marés. Na falta de clorofila, injeta-se a floresta no sangue. Já tinha alcançado esta percepção, preferindo pular as linhas da vida dos efeitos colaterais. Enquanto a chuva de neutrinos ultrapassa a epiderme, sem flechas, engulo comprimidos para que a febre não me encante com seus tentáculos de anormalidade apaziguadora. E as bulas, alguém recicla?


 

Tuna


Preciso pintar a face com sinos. Costurar ao corpo a saia de jade. Oscilar os fios de serpentes na borda afiada da cratera. Sem ferir o monstro da terra, sem morrer durante o parto. Preciso plantar o milho sagrado, decifrando o calendário extinto, em horas de lua asteca e sol incaico. Depois cozer o pão com formato de estrelas, sem incinerar aldeias. Sem alimentar a siderurgia que queima a face pintada com sinos, que rasga a saia de jade, ferindo o monstro da terra, morrendo durante o parto. Mas danço ao ritmo esquizo de uma despedida fronteiriça. Dos rituais ancestrais restaram incólumes os bisnetos sacrifícios. Os crânios alongados estão reduzidos. As bestas primaveras do jardim escondem-se sob meus pés, cinzentos de junco e júbilo. Sai-me uma centopeia pela boca. E a chuva industrial me apaga os pontos riscados.

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