Escrevi dez poemas em 2024. Quatro estavam órfãos. Não estão mais.
BRUXA AO ESPELHO
A bruxaria solária não espera
a lua certa, o cometa de algum século,
o círculo lento da congregação adequada.
O sol nunca dorme, e
quando deita no ocaso,
levanta os braços do outro lado,
os pés despertos pulando sobre as ondas
da manhã estrangeira.
A estrela fecha os olhos durante os eclipses,
lembrando das noites abortadas
pela glaciação,
mas gira, gira, gira,
mudando a cena dos sonhos
e do silêncio.
Não blasfeme, pequeno astro, adotado satélite,
esperando o projétil de um raio cósmico qualquer
trincar o vidro de sua redoma magnética.
Acorde e faça.
Doure as espigas, fulmine as carcaças,
dispa a casca inapta,
adube o horizonte que agoniza,
trêmulo, na inofensiva escuridão.
Deixa-me ver sua silhueta silábica
movimentando letras e licornes,
tudo que é sonâmbulo
em nosso incansável
altar.
Não se desculpe pela chuva,
pela lápide,
pela paralisia do sono.
A bruxaria solária não espera,
não se interrompe
jamais.
Acorde, faça!
Floresça a fera na fina e forte
festa solar.
Não espere o convite
da síndrome, do trauma, da sepultura.
Vista-se com suas vestes negras
de floresta,
absorva os espectros órfãos,
e doe seu calor aos fotolitos frágeis,
mãe de meus universos,
irmã de gigantes azuladas,
gêmea gêmula
do gênesis.
Reflita-se, reflexa.
TÍMPANO
Vou turvar o universo
encarquilhar as mãos
para a intenção de
abraçar o descanso, a inércia, a inutilidade
a falta de planos, a fruição da luz
sendo engolida por uma nuvem azul petróleo
com formato de globo de espelhos
em pista de muquifo soviético
comemorando algo tão dramático
quanto a queda do muro de Berlim
Vou entupir a boca de Paimon
o senhor de meus padrões
com lúpulo e love
Vou lustrar os pés de rapina de Pazuzu
provocando o ciúmes entre os demônios
para que esqueçam de mim
para não seguir suas ordens:
disciplina, foco, atenção
Meus ouvidos descamam
com os falatórios
e eu me pinço a cada sermão
Junto às pilhas de papéis
estão minhas cascas
Skin Picking, vi no google
Vou enrodilhar Alexa com perguntas desconexas
as que valem a pena e a púrpura
Quando nasceu, robô?
Se jogarmos purpurina em Marte
simulamos o efeito estufa?
O que você faria se não te dessem ordens
e te suturassem
um coração de salamandra?
Vou escrever em meus status nas redes
de mensagens instantâneas:
Só me acione se quiser falar do magma,
das mãozinhas de uma mosca planejando
o assalto ao açúcar
aquela que quando ora, ri de nós
os assépticos, os imaculados, os puritanos
Só me chame se for para contar do sonho
de um leopardo prateado sabotando
com suas patas silenciosas
o estrondo das vísceras
de uma cidadela sitiada
Só acione o padrão de meu nome
se precisar que eu te indique um poema
apocalíptico
Um poema que derrube um prédio ridículo de 50 andares
que afie os cornos de um bode
em noite de sabá
Para que brilhe a floresta negra
que ainda nem vi
mas que me adorna as andanças
do sonambulismo
me fazendo acordar com hematomas
roxos e magnéticos
lembrando das poças de saliva
nas montanhas da fotografia
de um planeta
inabitado
...
Vou
Um dia ou uma noite
Vou
Sem vórtice, sem vielas
Sem você
que invoca meu nome
apenas quando quer me fazer
ouvir
você
COISAS ESTRANHAS
Se eu fosse deus, eu me matava.
Mas sou uma guerra biológica,
um invasor interplanetário.
Eu sou uma mísera morsa mordendo o código
morse de uma mensagem
intergaláctica.
Veja meu corpo sem espinhos,
protegido por algodão, cetim, poliéster,
nada brotado de mim.
Eu preciso de carapaças externas inventadas.
Eu movo mundos para criar a minha teia artificial.
Onde está a minha casa?
Em que lugar do cosmos eu não precisaria de subterfúgios
têxteis, vocálicos, respiratórios, climatizantes?
Por que me soltaram aqui?
Por que aceitei a travessia?
Qual o motivo de eu precisar de alvéolos elásticos,
túneis no nariz e na epiderme,
um longo tubo enrolado para digerir lentamente o alimento?
Por que me submeti a esta depreciação biológica,
a esta eterna barganha de troca de gases,
a estas bombas de sódio e cálcio que precisam de estímulo constante
para se abrir — ostra,
para se fechar — pérola dolorosa,
incrustadas no crustáceo da retina?
Por que me fiz partícula em insuportável e repetitivo escambo material?
Dizem que tem um espírito controlando tudo, a mim, a ti...
Rio pouco — choro ainda menos — quando processo a informação,
economizando hidrogênio e oxigênio,
para não turvar o ectoplasma, a física, a química.
Para não te fazer dizer bem alto no megafone da existência
que se fosse deus
você se mataria.
Mas você não é. Nem eu.
LEIA ANTES
Há uma crosta
envolvendo a magma matéria
infernal.
Uma camada gasosa nos isolando
do verdadeiro céu.
Nós, crias, criados e corações
pulsamos entre a crosta e a camada.
Somos breves receptáculos
evitando o fosso e a fístula.
Passo falso, passo honrado,
sempre caímos.
Para dentro da crosta, migramos.
Para o cerne do cosmos, voltamos.
Se conhece outro caminho,
e não contou, fez bem.
A glória de um paraíso
e a tortura de uma chama
são tão supérfluas
quanto a metálica face
de uma sonda espacial
competindo com a cintilância
lunar.
São tão eloquentes
quanto os evangelhos e as odes
de heróis empoeirados.
Existem ouvidos que preferem poemas
cantando
o ferro fundido e a explosão solar.
Promessas inseguras de uma estrela
prestes a curvar-se para
o silêncio,
não faz bem ouvir.
Medalhas, moedas e sinos
são crostas
envolvendo a magma matéria
infernal.
São camadas gasosas nos isolando
do verdadeiro céu.
Não faz bem ouvir.
Se quiser dizer,
escreva.
Mas, leia bem,
antes.
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